PUBLICADO NO BRASIL DE FATO
POR ANELIZE MOREIRA
O constrangimento de Fernanda (nome fictício) ao contar a sua história em um espaço público revela a dificuldade de discutir o assunto no Brasil. O aborto é parte da vida de muitas mulheres brasileiras, mas ainda é um tabu, motivo de medo, culpa e vergonha. Para além de ser um crime previsto em código penal, ainda é visto como um algo imoral e um tema proibido, tratado com viés religioso em um país laico.
Quais os caminhos do aborto legal no Brasil? Quais dificuldades que essas mulheres enfrentam para conseguir acessar os serviços públicos que oferecem os procedimentos nos casos previstos pela lei? Quais os desafios para que aconteça a descriminalização e que aborto seja pauta de política pública?
Pesquisa Nacional de Aborto realizada em 2015 pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) em parceria com a Universidade de Brasília mostrou que, naquele ano, uma em cada cinco mulheres entre 18 e 39 anos tinha realizado pelo menos um aborto – num total de quase 500 mil intervenções. Os números podem ser maiores, já que a pesquisa não abrangeu adolescentes, mulheres em áreas rurais e após os 49 anos.
Apesar disso o aborto ainda encontra obstáculos para ser encarado como uma questão de saúde pública, mesmo nas três condições permitidas pelo direito: em casos de estupro, quando há risco de vida à mulher ou anencefalia do feto.
A pesquisa mostra que quem faz aborto no Brasil majoritariamente são mulheres jovens, têm filhos e segue uma das religiões predominantes no país – são católicas, evangélicas ou espíritas.
“Eu não tive trauma, mas um alívio! Existe trauma para aquela mulher que, sem condições financeiras, vai para uma clínica clandestina e é tratada pior que um animal ou aquela que compra remédio de um, remédio de outro e nunca dá certo porque o remédio não tem procedência. Aí realmente isso traz um trauma. O tipo de atendimento define se você vai ter trauma ou não.”, diz Rebeca Mendes, primeira mulher latino-americana a recorrer à suprema corte de seu país para interromper uma gravidez não desejada.
Em dezembro faz dois anos que o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o pedido, quando ela decidiu também realizar o procedimento na Colômbia, onde é permitido em casos de risco à saúde da mulher.
De acordo com dados do Ministério da Saúde, entre 2008 e 2017 o SUS gastou R$ 500 milhões com internações por complicações de abortos inseguros.
“Estima-se que 3 milhões das mulheres que já realizaram aborto tenham filhos. Isso significa que, se a lei penal fosse cumprida à risca, haveria hoje 3 milhões de famílias cujas mães ou já deveriam ter estado presas ou estariam, neste momento, presas pelo crime de aborto. Por causa da seletividade do sistema penal, não seriam todas as mulheres que fizeram aborto que estariam nos presídios, mas as mulheres negras e indígenas, pobres e menos escolarizadas”, diz Diniz.
Rebeca, Débora e Fernanda se conheceram pela luta pelo aborto. Fernanda e Rebeca receberam ajuda de Débora para tentar realizar a interrupção pelas vias legais, mas tiveram de sair do país para que isso acontecesse.
COMO SE FOSSE CLANDESTINO
Após a negativa da Justiça brasileira, a história de Rebeca se tornou simbólica. Ela virou ativista na luta pela descriminalização e, neste sábado (28), lança a associação “Milhas pela Vida das Mulheres” junto com outras organizações para apoiar mulheres a buscarem seus direitos reprodutivos em outros países.
Mãe solteira, Rebeca é estudante de Direito. Ela conta que ao engravidar do terceiro filho, pesou na decisão do aborto o risco de ter de abandonar os estudos.
“Meu contrato de trabalho ia terminar, eu ia ficar desempregada, grávida e com dois filhos. Eu estava no meio da minha faculdade e só pude voltar a estudar quando os meninos cresceram. Eu já tinha passado pela maternidade duas vezes, sabia como é ser mãe. E minha experiência na maternidade não foi muito boa. O pai trabalhava, estudava, fazia o que queria e eu tinha que ficar dentro de casa cuidando dos filhos. Passar tudo sozinha? Não quero!”, desabafa.
“Lá eles entendem que, se traz risco psicológico para essa mulher, ela não tem condições de levar adiante. Quando essa mulher entra na clínica com a decisão de não levar a gravidez adiante, eles já entendem que essa mulher está com psicológico abalado e que, a partir dali, vai fazer de tudo para interromper. E isso é um estado de risco.”
Ela relata que o aborto na Colômbia aconteceu como se fosse uma internação. “Lá me deram dois misotrol pra abrir o útero e dois ibuprofeno e fiquei aguardando. Depois fui para uma sala fazer ultrassom, eles viram que eu estava de 11 semanas e começamos o procedimento e quando terminou já sai com um contraceptivo subcutâneo. Sai de lá em uma hora e tranquila. Chorei de alívio”, lembra a estudante.
“Minha mãe tinha falecido há um ano. Desde então comecei a ter ataques de pânico frequentes e entrei em depressão. Eu tinha mais de um ataque por semana e tinha que ir para o pronto socorro. Eu me sentia doente. E gravidez era uma luta para mim, eu olhava e não conseguia ver futuro.”
Mãe de cinco filhos, Fernanda mora no interior de São Paulo e conta que por causa do adoecimento não tinha forças para sair do quarto e cuidar dos filhos. “O dia passava, eles dormiam e eu me sentia muito mal, queria ter forças e vontade para ficar com eles, mas não conseguia”, lamenta.
Ela fez buscas na internet e chegou ao hospital Pérola Byington, referência nacional em atendimento público em aborto legal. “Eu saí de lá com medo de ser internada, sai assustada”. Ela conta que foi atendida pela diretora da instituição. Esta teria dito que a gestação não poderia ser interrompida e que, se fosse o caso, ela poderia ser internada para tratar da depressão.
Após a tentativa frustrada, Fernanda decidiu ir para a Colômbia. Foram três dias de medo e insegurança, mas diz ter sido bem assistida pelos profissionais de saúde. Lá, apresentou o mesmo laudo médico e conseguiu realizar o aborto de forma gratuita, legal e segura.
“O Estado entende que é possível interromper uma gestação para que uma mulher não morra, mas não é possível se a gravidez provoca um dano à saúde física ou mental. O governo brasileiro acha razoável e tolerável que uma mulher perca a função dos rins, perca a visão, tenha uma grave complicação neurológica, mas que não faça o aborto. Ou seja, ele não é permitido para preservar a saúde da mulher”, explica o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett Ferreira, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Durante 25 anos, ele realizou 2.200 mil abortos legais, quando coordenou o Pérola Byington. A unidade, que fica no centro da capital paulista, presta atendimento integral para mulheres, meninas e meninos em vítimas de violência sexual.
Para o médico, o aborto deveria ser permitido em qualquer circunstância que a mulher considere que não pode prosseguir com a gestação. Ele explica que a lei brasileira é restritiva e só prevê evitar a morte, mas não a preservação da saúde da mulher.
“É interessante pensar que consideramos que o aborto é possível desde que esse motivo esteja de acordo com o que concordamos. O Estado brasileiro concorda que uma mulher realize uma interrupção de gestação decorrente de um estupro. Aceita-se o aborto desde que o motivo seja aceito. O aborto não deve ser feito pela minha convicção, mas pela convicção de cada mulher, ela que deve decidir se isso é possível ou não. Os motivos não deveriam ser do Estado, mas da mulher”, diz o obstetra.
DIREITO À SAÚDE
André Malavasi, diretor do setor de ginecologia do Hospital, explica que esse tipo de atendimento não é exclusivo do Pérola, mas deve acontecer em todo serviço público de saúde que tenha médico, pois o atendimento deve ser feito de forma rápida para que sejam feitam as profilaxias necessárias na vítima de estupro.
A rede, porém, não está preparada. Para acessar o serviço pelo SUS, muitas mulheres peregrinam de outros estados para a capital paulista. Cerca de 60% dos pacientes são de fora do estado de São Paulo.
“Conseguimos colocar um serviço de Instituto Médico Legal dentro do hospital. Isso faz com que a vítima faça dois atendimentos juntos, tanto exame de perícia como médico, isso faz com que o processo seja menos traumático para paciente que sofreu abuso sexual. Esse é um modelo que gostaríamos que fosse aplicado em outros locais.”
Ele explica que um dos principais obstáculos, para as mulheres, é dar continuidade aos cuidados com a saúde após o procedimento.
“Por exemplo, uma mulher vítima de estupro que é de Peruíbe, que não consegue ser atendida. Ela vem com dinheiro da passagem pro Pérola para interrupção. Depois ela precisa dar prosseguimento ao atendimento psicológico e ela falta porque não tem recursos para voltar.”
“Existe uma concepção social de que a mulher nasceu para gerar, independente da situação que ela esteja submetida. É colocado para nós, mulheres, que não é possível o aborto, por mais que seja fruto de uma violência e mesmo que ela não tenha condições de seguir em frente com a gestação. Por conta da educação sexista e machista, é alimentado em nós a falsa crença social de que elas estão fazendo algo errado”, analisa.
Os serviços de saúde pública têm o dever de realizar aborto nos casos previstos em lei, mas, na prática, a legislação não é cumprida. Uma pesquisa da ONG Artigo 19 revelou que dos 176 hospitais listados para realização do procedimento, apenas 76 (43%) confirmam a oferta do serviço.
O aborto é crime previsto em código penal. Uma mulher que tenta abortar no Brasil pode ser considerada criminosa até três anos após a prática. O profissional de saúde envolvido pode pegar até quatro anos de prisão. A restrição do aborto incentiva a busca por práticas inseguras e deixa mais vulneráveis as mulheres pobres e negras.
“O aborto na real é algo que já acontece, mas na forma segura é delimitado para alguns. Quem tem poder aquisitivo, sai de lá ilesa, mas a mulher pobre e preta vai procurar um lugar que ela pode pagar e se submetem a lugares que põe em risco a sua própria vida”, explica a psicóloga Priscila Monteiro.
FALTA DE INFORMAÇÃO E PRECONCEITO
A partir desse estudo a defensoria constata algumas dificuldades que as mulheres enfrentam ainda hoje, como a falta de informação, judicialização e até descumprimento de diretrizes do governo para atendimento à mulher vítima de violência sexual.
“Para os casos de abortamento por estupro, ele pode ser realizado até a 22ª semana de gestação, mas alguns estabelecimentos de saúde responderam que realizavam só até a 12ªsemana. Outras falaram que havia necessidade de judicialização, quando isso não é necessário. Alguns pedem boletim de ocorrência para comprovar que houve estupro. Oficiamos esses estabelecimentos para que eles se adequem, mas não tivemos todas as respostas dessa devolutiva inicial”, explica Paula Sant’Anna Machado de Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O órgão atende em média quatro denúncias por mês de mulheres que buscam informação ou que tiveram recusa no atendimento, mesmo se enquadrando nos critérios de abortamento legal.
As Unidades Básicas de Saúde, são a porta de entrada para as mulheres que buscam informações sobre aborto legal.
“Por conta de uma informação tardia, muitas mulheres só conseguem saber que têm direito ao serviço quando já passaram do prazo para o procedimento, em casos de violência sexual”, relata a defensora.
“Nesses casos a maioria das denúncias chegou até a delegacia por meio da equipe de saúde que atendeu essa mulher. Acionamos os conselhos das categorias, pois fere a conduta ética e não poderiam quebrar sigilo.”
A fim de aumentar a informação e desmitificar o debate, um conjunto de organizações preocupadas com a garantia dos direitos das mulheres se uniram no Rio Grande do Sul em um Fórum do Aborto Legal.
O coletivo tem realizado encontros sobre acesso à informação, acolhimento e atendimentos na rede de hospitais e nas universidades do estado.
“Já foi estabelecido um diálogo com os serviços credenciados, equipes de saúde e direção dos hospitais, universidades públicas e privadas, sendo que uma delas incluiu em seu currículo de cursos de extensão o tema”, afirma Claudia Prates, da Marcha Mundial de Mulheres.
LUTA PELA DESCRIMINALIZAÇÃO
Além disso, o aumento do número de políticos conservadores com viés ideológico de extrema direita no Congresso Nacional, muitos ligados a movimentos religiosos, encorajou o desarquivamento de propostas retrógradas. Defensores do movimento “pró-vida” tentam avançar no Senado a proposta de emenda à Constituição n° 29, de 2015 chamada de PEC da Vida – que pode proibir ou dificultar o acesso ao aborto seguro e legal.
“O que fica claro com a PEC 29/2015 é que tentam formular uma agenda política pautada no missionarismo evangélico”, afirma Débora Diniz. Fazem parte desse movimento lideranças pentecostais, católicas e espíritas.
Mas parte da sociedade reagiu e a coisa não andou. “A PEC que já foi retirada da agenda de votação mais de uma vez na CCJ. Estão movimentando também uma força contrária, de movimentos de mulheres que recusam a interferência religiosa na política”, conclui a psicóloga.
Devido a sua atuação em defesa de direitos sexuais e reprodutivos, Débora Diniz afirma que passou a sofrer ameaças e perseguições. No ano passado, ela decidiu sair do país.
“Sofro ameaças desde que a minha atuação ganhou visibilidade, ainda nos anos 2000, mas uma nova onda se iniciou em maio de 2018, vinda das redes sociais, em direção também à minha família, aos espaços em que convivo e à Universidade de Brasília. Por isso saí do Brasil. Voltar significaria expor todas essas pessoas a riscos. Apesar da distância, essas ameaças não conseguiram me calar; pelo contrário, sigo mais ativa do que nunca”.
No cenário político atual, Rosangela Talib, do Movimento Católicas pelo Direito de Decidir, avalia que será necessário muita luta para avançar no tema, pois uma das barreiras é a bancada religiosa.
“No Congresso, o que acontece é que são barradas propostas para avançar o tema e são colocadas propostas que preveem o retrocesso do aborto. Eles colocam a questão religiosa e moral acima da discussão. Quem tem se posicionado a respeito disso é o STF, como casamento de pessoas do mesmo sexo, por exemplo”, ressalta a ativista.
O Brasil de Fato procurou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, assim como autores de propostas pró-vida, mas não obteve retorno.