A relação de amor e ódio do paulistano com a Virada.
“Viver a cidade que a gente ama. Fazer a cidade que a gente quer.”
Esse é o slogan de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo. O que significa que a gente ama a cidade, mas prefere outra.
O slogan reflete a relação de amor e ódio que os habitantes têm com a cidade. Vamos olhar a Virada Cultural e o novo Plano Diretor Estratégico para ver como a prefeitura está lidando tanto com o amor quanto com o ódio.
A idéia da Virada – a princípio – traduz tudo que mais amamos em São Paulo: o multiculturalismo. Fala sério, onde mais é possível uma multidão ver e ouvir, em algumas horas, um cortejo de congadas, maracatus e afoxés, a melhor banda cover de Frank Zappa do mundo, Gal Costa desafinando leve e perdoavelmente em plena cracolândia, relembrando o nascimento da Tropicália na cidade? Uma sucessão de rap, hip-hop e funk em cada esquina e um senador da República – Eduardo Matarazzo Suplicy, of course! – usando o microfone do palco para pedir ao ladrão a devolução de sua carteira roubada?
O que a gente odeia nem precisa dizer, mas vamos repetir: o trânsito infernal, o barulho, a violência, os privilégios dos ricos e senadores, a injustiça, a falta de mobilidade e segurança – não só em relação a assaltos, mas até mesmo para atravessar a rua na faixa ou andar de bicicleta na ciclofaixa: o atropelamento brutal do ciclista pobre que perdeu o braço na avenida Paulista a caminho do trabalho dispensa mais comentários.
Enquanto a Virada está prestes a virar lei proposta pelos vereadores tucanos Andrea Matarazzo e Floriano Pesaro – dois entre milhões de oriundi presentes na cidade, incluindo o verdadeiro chefe do partidos deles, José Serra – com apoio do PT e da Comissão de Justiça da Câmara, o Plano Diretor Estratégico está longe de alcançar tamanho consenso, e até mesmo de conciliar a frágil lei do silêncio urbano com a preservação do sono dos atuais e futuros moradores que o plano pretende concentrar no centro da cidade para tentar reaviva-lo. E mais: a violência que o público enfrenta durante a Virada é a mesma com a qual os habitantes do centro da cidade já estão acostumados. Talvez um pouco mais estimulada pela freguesia ocasional, mas nada muito diferente do dia a dia.
Para produzir uma virada na cidade que a gente ama e fazer a cidade que a gente quer, o prefeito Fernando Haddad conta com vários instrumentos. O secretário baiano da cultura paulistana, Juca Ferreira, por exemplo, começou propondo e realizando na Virada deste ano a autonomeada “descriminalização do funk” e o retorno do Racionais MC, banidos da Virada pela administração Kassab sob a acusação de promoverem a violência. A Polícia Militar do governo estadual, no entanto, é a responsável pela segurança do evento e acredita na vinculação direta do funk ao tráfico de drogas. Temos ai um ponto de atrito e uma razão para acreditar que possa ter havido alguma animosidade entre as autoridades responsáveis pela organização e pela segurança do evento. Eu, no entanto, posso apenas afirmar com convicção que a única cena de abuso da autoridade policial que testemunhei partiu da Guarda Civil “Metropolitana” – municipal – e não da PM. Como os partidos que dirigem os governos municipal e estadual possuem orientações distintas e as corporações militares de segurança possuem suas próprias, fica muito difícil uniformizar as polícias.
Para fazer a cidade que a gente quer na cidade que a gente ama, as audiências públicas para a definição do plano diretor estratégico e “participativo” – como reza a propaganda do governo – precisam ser tão populares e lotadas quanto a Virada. E, nesse quesito, a propaganda do governo não está sendo tão eficiente quanto a propaganda da Virada, nem o seu slogan parece ter sido compreendido pelos próprios redatores. A última audiência sobre a reformulação da Operação Urbana Água Branca, por exemplo – que se antecipa ao próprio Plano Diretor sendo subordinada a ele – teve público muito inferior às anteriores realizadas pela administração Kassab e comandadas pelo ex-secretário do Verde e do Meio Ambiente, Eduardo Jorge. Ainda assim o público presente pode expressar claramente sua oposição aos planos da prefeitura de aumentar o caos urbano criando um novo bairro para 60 mil habitantes em área de várzea do Tietê espremida entre o rio e as linhas de trens e metrô, carente de escolas, hospitais, transportes e outros serviços públicos.
É verdade, porém, que a Secretaria de Desenvolvimento Urbano criou uma página no caótico site da Prefeitura – os sites sempre são espelhos – contendo informações atualizadas e até transmissões online das apresentações públicas do plano diretor. A penúltima – sobre mobilidade urbana, com a presença maciça dos ciclistas paulistanos – lotou um auditório de apenas 300 lugares. A última – sobre instrumentos de política urbana – foi marcada pelos conflitos entre o plano diretor e as leis de regulação urbana: como o plano, o silêncio e a lei da Virada, por exemplo. Tudo isso é bom, mas ainda é muito pouco perto do que a cidade precisa. E falta planejamento e organização num debate tão amplo e complicado, envolvendo partes tão frágeis quanto poderosas em lados opostos. Há técnicas, equipamentos e especialistas em organização do planejamento participativo que ficaram tão abandonados quanto o centro da cidade quando a Virada acaba.
Comandada pelo vereador Matarazzo – sobrinho-neto do conde cujo império industrial dominou aquela área – a audiência foi um exemplo perfeito de como os slogans mudam ao sabor do vento e dos interesses sem que a cidade consiga virar com eles. Durante o governo Kassab, Matarazzo foi Subprefeito da Sé, onde inaugurou a Virada que hoje quer transformar em lei. Quanto à operação urbana Água Branca – cujo projeto foi iniciado por Kassab – ele agora se diz contra “do começo ao fim”.
Só para terminar: São Paulo teve 57 prefeitos entre 1900 e 2000. Ou seja, um prefeito a cada 1,7543859649122807017543859649123 anos. Dá pra imaginar quantos slogans já teve?