O delegado da polícia civil Rodrigo Bossi de Pinho perdeu os cabelos desde que descobriu que tem um tipo de câncer muito agressivo no esôfago, que evoluiu para o estômago, fígado, fêmur, os dois pulmões e o mesentério.
Até o início do ano, sem saber que tinha a doença, ele era responsável por uma das investigações que abalaram as estruturas de poder em Minas Gerais.
Ele começou por investigar os crimes atribuídos ao lobista Nílton Monteiro, e descobriu que as acusações feitas ao suposto criminoso eram falsas.
Delator da Lista de Furnas e do mensalão mineiro, Nílton Monteiro chegou a ficar quase três anos presos por acusação de estelionato. Era uma pedra no sapato de Aécio Neves, mas não só.
As listas divulgadas por Nílton atingiam outros políticos, como o ex-governador Eduardo Azeredo, que cumpre pena de prisão, e o ex-vice-governador Clésio Andrade e o ex-ministro Walfrido dos Mares Guia.
Os documentos em poder do lobista também feriam interesses de gente muito rica, como a família do advogado Felipe Amodeo, já falecido, e o empresário Vitório Medioli, dono da transportadora contratada pela Fiat, entre outros.
Nílton tem documentos que, se validados, podem obrigar os milionários a colocar a mão no bolso e pagar a ele uma dívida que, por baixo, soma mais de 60 milhões de reais.
São notas promissórias e termos de confissão de dívida que têm como beneficiário Nílton Monteiro.
Nílton mora num bairro modesto, chamado Cachoeirinha, em Belo Horizonte, e aí surge a primeira pergunta: como um homem humilde como ele pode ter em mãos tantos créditos milionários?
“O que a gente vinha apurando é que Nilton Monteiro operava para o deputado Sergio Naya, e a gente sabia que Sergio Naya emprestava dinheiro para todo mundo, para político, para empresário, etc.”, contou o delegado.
Para grandes corruptos, emprestar dinheiro e manter uma rede de credores e devedores é uma forma de lavagem. Não está no controle das autoridades, e faz com que o credor tenha sempre à disposição juros do dinheiro emprestado.
Nílton teve o nome usado nesse esquema por Naya, que foi homem de confiança do general Golbery do Couto e Silva durante a ditadura militar e, depois, se elegeu deputado federal constituinte em 1986. Logo depois, passou a controlar a comissão do orçamento da Câmara dos Deputados, onde são decididas as obras públicas.
“Para se livrar dessas doações e desses empréstimos que não eram nada republicanos, ele passa os créditos para o Nílton. Como era homem de confiança dele, do dia para noite Nílton vira titular de crédito milionários”, afirmou do delegado, com base na investigação realizada por mais de dois anos.
A transferência de créditos para Nílton se deu a partir de 1998, quando a Globo passou a fazer uma campanha contra Naya por conta da queda do edifício Palace II, que tinha sido construído por ele. É provável que tenha sido uma forma de ocultar créditos.
E quem era Nílton Monteiro? Ninguém conhecia.
“Foi muito fácil transformar o Nílton Monteiro em um estelionatário. Bastava dizer que estes títulos de crédito eram todos falsos”, explicou.
“Nílton Monteiro, é preciso que se diga, não era flor que se cheire. Participou de esquemas de corrupção, ele levava dinheiro, era mula, transportava o dinheiro de corrupção, mas estelionatário ele não é”, contou.
Prova disso é que, há cerca de um ano, a Justiça ordenou o pagamento de mais de 60 milhões para um grupo que intermediou a venda de créditos do ICMS da empresa Samarco para a empresa de energia do Espírito Santo, uma antiga estatal.
Nílton participou da intermediação desse negócio, através de um contrato com a organização Consultores Nacionais. Ele entrou na operação porque, como lobista, conhecia o caminho das pedras.
Os créditos existiam e os direitos de venda estavam em posse dele. Mas Nílton acabou sem receber um único centavo de comissão
Em razão de ter sido passado para trás, Nílton delatou um esquema de corrupção no Espírito Santo, já que sabia que, para o negócio se concretizar, foi preciso pagar propina. Sabia quem eram os corruptos, e os entregou, inclusive o presidente da Assembleia Legislativa, que chegou a ficar preso.
No auge do escândalo do mensalão, Nílton voltou a carga, e ajudou o PT a se livrar do cerco do PSDB, ao intermediar a divulgação das denúncias do esquema de corrupção de Minas Gerais, que incluiu documentos que comprovavam repasse de dinheiro para políticos que sustentavam o governo de Aécio.
Um desses documentos era a Lista do Valério, assinada em 2007, que nunca foi periciada, mas que tinha um conteúdo aparentemente verdadeiro, tendo em vista a reação dos nomes ali citados.
Em 2011, o próprio Marcos Valério negou a autenticidade da lista. Mas ele mudou a versão e contou por que, nos depoimentos que prestou ao delegado, como parte de um acordo de delação que nunca foi homologado pela justiça.
Rodrigo Bossi não fala sobre isso, já que há sigilo em torno do acordo, mas quem acompanhou o depoimento garante que ele confirmou a autenticidade e explicou que a negativa era parte de uma operação para blindar Aécio Neves.
Marcos Valério teria participado de uma reunião em sítio próximo de Belo Horizonte em que políticos como Azeredo contaram que era preciso transformar o lobista em um estelionatário.
Quando questionei o delegado sobre o conteúdo do vídeo, ele comentou que há nessa delação muito mais a ser revelado.
“Isso precisa entrar no livro de história, não pode ficar escondido. E hoje a gente vê que só está escondido por causa do Ministério Público, que jamais aceitou o acordo de delação premiada firmado por Marcos Valério comigo. Esse acordo, tanto o Ministério Público estadual quanto o federal, já foi todo discutido, mas no final das contas o Ministério Público roeu as cordas”, disse.
Houve a homologação parcial do acordo, feita pelo ministro do STF Celso de Mello, mas ele não tem validade diante da falta de benefício a Marcos Valério, que, nessa condição, não confirma o que disse, ainda que haja gravação.
“Para um acordo ter validade, é preciso que ambas as partes concordem, senão não seria acordo”, esclareceu o delegado.
Para isso, o Ministério Público Federal teria que concordar com a redução da pena imposta a Marcos Valério por conta do mensalão. Mas os procuradores se negam, segundo Rodrigo, a aceitar conceder qualquer benefício.
Por quê?
“Porque a delação do Marcos Valério pega toda classe política, do partido A ao partido Z, passando pelos grandes empresários e até banqueiros”.
Para Rodrigo, que sabe que seu tempo de vida é curto, a frustração é grande. “Eu cheguei a trabalhar 70 horas por semana. Eu saía 3 horas da manhã da delegacia e no dia seguinte, às 8 horas da manhã, eu estava lá de novo”, recordou.
Para ele, o desinteresse pela conclusão do acordo com Marcos Valério também reflete uma decisão política. “Minas foi blindada, ou seja, o mensalão genérico — ele é um só e é perene — começou em 94. Em Minas, tem um interregno e deixa de existir, que é no governo Itamar, durante quatro anos. Quando sai o Itamar, o mensalão volta para Minas. O mensalão apurado, o chamado mensalão do PT, é o mesmo que acontecia em Minas, no governo Aécio, porque ele retorna para Minas. Os contratos de publicidade foram retomados. Só que Minas foi blindada. Necessariamente, Minas tinha que participar da CPMI dos Correios. Só que os documentos sobre Minas foram subtraídos da CPMI dos Correios para blindar Minas Gerais”, comentou.
Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo, fruto de uma armação de políticos e empresários que já tinha traçado o projeto para eleger Aécio Neves presidente do Brasil, em 2010 ou 2014 — Aécio perdeu na disputa interna do PSDB para José Serra e, em 2014, foi derrotado por Dilma Rousseff.
A blindagem, segundo ele, pode ser descrita em dois atos, no ano de 2006:
“Os documentos somem da CPMI e Nílton Monteiro é transformado em estelionatário”, disse.
Para isso, até matéria jornalística foi publicada em veículo de circulação nacional, segundo ele paga. A Veja foi um dos veículos que apresentou Nílton como o maior estelionatário do Brasil.
Nas próximas reportagens da série, vamos detalhar essa operação para blindar Minas. Na conversa com o delegado, vê-se que ele se emociona ao falar do trabalho que não pôde concluir — além da doença, ele foi perseguido.
“O Brasil tem o direito de saber”, declarou. “Não sei se eu verei o resultado do meu trabalho, mas eu tenho muita satisfação do trabalho que eu realizei. Só que não quero que tudo o que eu apurei morra comigo. Não é justo com o Brasil”.