Publicado originalmente na Agência Pública
POR LUANA ROCHA E MARIANA DELLA BARBA
Não importa em qual parte do país você mora: pode ser difícil ou mesmo impossível saber se o copo de água que você está bebendo tem ou não agrotóxico e, pior, se a concentração do pesticida está acima do limite considerado seguro no Brasil.
O problema veio à tona após a publicação, pela Repórter Brasil e Agência Pública em parceria com a organização suíça Public Eye, da reportagem “Coquetel” com 27 agrotóxicos foi achado na água de 1 em cada 4 municípios”. Nela, um mapa interativo feito com base nos dados do Ministério da Saúde, coletados entre 2014 e 2017, mostrava os pesticidas encontrados nas torneiras do país, destacando quais municípios tinham índices acima do limite considerado seguro.
O mapa, divulgado em abril deste ano, trouxe pela primeira vez os dados nacionais de forma clara, de modo que o público não especializado pudesse entender. A publicação gerou grande repercussão, com mais de 400 veículos de mídia discutindo os resultados de suas cidades. Além do grande interesse público sobre esses dados, a repercussão revelou também que há uma série de falhas no monitoramento e na responsabilização dos órgãos envolvidos.
Há cidades, como Brasília e Recife, que descumprem a legislação ao não enviarem ao Ministério da Saúde os resultados dos testes sobre agrotóxicos na água. E outras como Bauru (SP), onde nenhuma providência foi tomada pela Vigilância Ambiental mesmo depois que os dados apontaram concentração de pesticidas na água 160 vezes acima do valor permitido – o que indicaria um risco iminente à população que bebe essa água. Também há empresas de abastecimento que minam a credibilidade do banco de dados ao enviar os resultados dos testes usando parâmetros diferentes dos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, caso de São Carlos (SP), Porto Alegre (RS), Viçosa (MG) e Balneário Camboriú (SC).
“É um ambiente de desregulação total”, afirma o procurador do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul, Marco Antonio Delfino de Almeida, sobre a estrutura que gira em torno do Sisagua, o sistema criado pelo Ministério da Saúde para armazenar dados sobre a água e que funciona com o preceito de que a responsabilidade de alimentá-lo corretamente é dividida entre União, estados, municípios e empresas de abastecimento. “Deveria ser papel do poder público analisar, avaliar e trazer esses dados para população de maneira ampla, irrestrita e transparente. Mas isso não acontece.”
Almeida chama atenção para a gravidade de situações em que, mesmo quando os testes não foram enviados ou os resultados indicavam concentração perigosa à saúde humana, não houve fiscalização, cobrança por providências ou penalidades.
No escuro
Casos analisados pela reportagem, em diferentes partes do país, ilustram como uma série de omissões vem deixando a população no escuro quanto à presença de agrotóxicos na água que sai de sua torneira, colocando em risco a saúde das pessoas.
Brasília e Recife, por exemplo, representam um problema que atinge 52% dos municípios brasileiros: os resultados dos testes de 2014 a 2017 não foram enviados ao Ministério da Saúde. Isso significa que os responsáveis não realizaram os testes para medir a presença de agrotóxico na água ou, se fizeram, não enviaram os dados para o Sisagua.
“Antes mesmo da divulgação da reportagem, cobramos a inclusão dos números, mas eles não cumpriram”, explicou João Suender, da Vigilância Ambiental da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, explicando que a responsabilidade pela coleta e envio dos dados ao Sisagua é da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb). A Caesb confirmou que houve “inúmeras dificuldades para repassar algumas informações referentes a agrotóxicos, sobretudo devido à falta de padronização existente”.
Suender argumenta que nada pode ser feito para punir a empresa que não envia os dados, já que a regulação do sistema é feita por uma portaria, instrumento que não teria poder de responsabilizar infratores.
Mas esse argumento é rechaçado pelo professor de Direito Administrativo da Universidade Mackenzie, Cecílio Moreira Pires. Ele explica que a portaria é vinculada à lei 6.437 de 1971, que prevê sanções para infrações. “O problema não é ausência de lei e, sim, de fiscalização e monitoramento do que fazem as empresas de abastecimento. O poder público não possui servidores suficientes e habilitados para exercer essa função”, sustenta.
A situação de Brasília se repete nas regiões Norte e Nordeste – onde o mapa publicado em abril pela reportagem revela um grande vazio de dados, já que a maioria dos municípios não envia informações sobre a presença de pesticidas da água. É o caso de Recife, capital pernambucana. A Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) reconheceu o erro e afirmou “que as análises de agrotóxicos estão disponíveis somente até o ano de 2015” e que está em processo de reforma dos laboratórios.
Já a Secretaria de Saúde Municipal informou que “há uma orientação do Ministério da Saúde que elege municípios prioritários para monitoramento de agrotóxicos e Recife não entra nessa lista por ter um perfil urbano, além de não possuir manancial de água para abastecimento local que possa sofrer esse tipo de contaminação”. De fato, segundo a norma do Sisagua, a Vigilância tem a prerrogativa de priorizar em quais cidades confere os dados, mas precisa garantir que todos os municípios enviem os resultados duas vezes ao ano. A nota afirma ainda que a Vigilância Ambiental não testa os agrotóxicos na água, “a não ser que existam evidências epidemiológicas para esse monitoramento”. A secretaria, porém, não esclareceu o que seriam “evidências epidemiológicas” e se alguma vez fez algum teste.
De acordo com o Mapa da Água, porém, nenhuma cidade pernambucana enviou os testes, como prevê a portaria do Sisagua. A Secretaria de Saúde de Pernambuco, por meio de nota, reconheceu a não inserção dos dados e afirmou que eles “foram analisados e serão inseridos no sistema apesar das amostras de vigilância não terem identificado valores que ultrapassassem o limite máximo referente ao padrão [estabelecido pela legislação brasileira]”.
As omissões e o jogo de empurra de Brasília, Recife e de outras cidades que não monitoram a presença de agrotóxicos na água prejudicam o efetivo controle “porque não há uma avaliação crítica ou uma validação dos dados”. É o que sustenta a professora Gisela Umbuzeiro do departamento de toxicologia e genotoxicidade da Unicamp, que conduziu um estudo sobre o Sisagua.
“Primeiro, não faz sentido tantos municípios brasileiros não alimentarem o sistema. Depois, mesmo em cidades que armazenam os dados, não existe análise técnica aprofundada do que foi informado”, pontua. Segunda a professora, sem validar essas informações, não é possível conhecer as particularidades de cada região – o que ajudaria no monitoramento. “A depender do tipo de cultivo que é plantado numa região, é possível saber qual agrotóxico é mais utilizado e fazer testes mais específicos de acordo com a realidade local.”
O alarme soou, ninguém reagiu
Outro problema grave evidenciado após a publicação do mapa é o dos municípios que registraram concentração de agrotóxicos acima do que é considerado seguro no país. Nesses casos, ações deveriam ser tomadas para averiguar se os dados estão corretos e encaminhar medidas para resolver o problema. Mas nem mesmo nesses casos providências foram tomadas. É o que aconteceu em Bauru, no interior de São Paulo, onde os números do Sisagua indicavam que seis agrotóxicos foram detectados em concentração acima do Valor Máximo Permitido, em diferentes datas entre 2014 e 2017, sendo que dois dos pesticidas (Clorpirifós e o Aldrin) foram encontrados em dois pontos de coletas diferentes na cidade.
A reportagem entrou em contato com os órgãos responsáveis e descobriu que nenhuma ação foi tomada. Das oito irregularidades, quatro foram registradas em pontos de coleta de responsabilidade do DAE (Departamento de Água e Esgoto) e as outras quatro em locais particulares, incluindo um poço (em um instituto de pesquisa local) a cargo da Vigilância Ambiental – ligada à Secretaria Municipal de Saúde. Danielle Depicolli Chiuso, chefe de Seção de Análise de Água do DAE de Bauru, enviou à reportagem os laudos referentes aos pontos que, no Sisagua, mostravam um nível de agrotóxico muito acima do máximo permitido. Nos documentos, no entanto, os índices eram diferentes daqueles enviados ao Sisagua e estavam dentro do autorizado. “Esses laudos mostram que a água de Bauru não estava contaminada e comprovam que apenas houve erro na hora de passar os dados no sistema do Sisagua”, afirma Chiuso.
O erro citado ficaria na conta da Vigilância, que na época era responsável por inserir no Sisagua os dados coletados pelo DAE. Roldão Puci, chefe de Ações de Meio Ambiente da Divisão de Vigilância Ambiental de Bauru, afirmou que os erros podem ter acontecido durante “um mutirão para digitação dos dados” no Sisagua, mas que não havia como confirmar.
“O Sisagua é muito pesado, complexo e demorado. Por isso, a gente prefere fazer a checagem no laudo em si. Também é mais simples fazer a conferência in loco do que no Sisagua”, afirma Puci.
Mas a Vigilância Municipal não apresentou os laudos das coletas de pontos de sua responsabilidade que mostravam água contaminada, como uma realizada em dezembro de 2017 no Instituto Lauro de Souza Lima, em que o agrotóxico Clorpirifós, cujo valor máximo permitido é de 30µg/L (micrograma por litro), mostrava um resultado de 5.000µg/L, um índice que, se fosse verdadeiro, ofereceria riscos imediatos à população de Bauru.
Quem, então, deveria vigiar a Vigilância, que não percebeu o problema ou percebeu e não foi atrás? Em qual setor das esferas públicas deveria acender um alerta para checar se esses dados altíssimos seriam erros de digitação ou se, de fato, a água estava com alto grau de contaminação?
A resposta passa pela Secretaria Estadual já que, segundo a portaria do Ministério da Saúde sobre tema, “compete às Secretarias de Saúde do Estados promover e acompanhar a vigilância da qualidade da água, em articulação com os Municípios e com os responsáveis pelo controle da qualidade da água”.
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo informou que “a responsabilidade de investigação e análise da qualidade da água é do município e das empresas responsáveis pelo abastecimento. O Estado capacita e orienta as vigilâncias municipais para que a análise de dados seja feita de forma correta.”
Um terceiro grande problema ficou visível quando a publicação do mapa abriu a “caixa-preta” dos agrotóxicos na água: nem todas as empresas seguem corretamente as orientações do Ministério da Saúde para lançar os resultados no sistema.
Um dos pontos mais delicados foi esclarecido após a divulgação da reportagem, quando algumas empresas de abastecimento reclamaram que estaria errada a interpretação feita pela reportagem – que se baseou na orientação do Ministério da Saúde. O ponto em questão era a leitura de dois códigos: o Limite de Quantificação e o Limite de Detecção.
Foram tantos os questionamentos enviados pelas empresas em decorrência da publicação do mapa que, em junho, o Ministério da Saúde convocou uma reunião técnica com representantes das empresas de abastecimento, do Inmetro, dos laboratórios de saúde pública, das Secretarias de Saúde e da Anvisa para elucidar a metodologia para leitura dos dados.
Algumas empresas alegavam que ao declarar o código “Menor que o Limite de Quantificação” estavam comunicando que não foi possível detectar agrotóxico na água. Mas, segundo Thaís Araújo Cavendish, coordenadora-geral de Vigilância em Saúde Ambiental, o ministério esclareceu que esse resultado na verdade significa que agrotóxicos foram identificados na água, mas em concentrações tão baixas que não puderam ser quantificadas.
Pode parecer uma conversa técnica de químicos, mas a compreensão correta da metodologia é fundamental para que o sistema de vigilância funcione para monitorar e garantir a qualidade da água.
Agora, com a esclarecimento da metodologia por parte do Ministério da Saúde, as empresas ou órgãos públicos que interpretavam errado precisarão corrigir os dados daqui para frente e também retroativamente. A pasta informou que deu até o fim deste mês (outubro) para essa correção acontecer.
Lista dos 27 ampliada?
Outra crítica feita ao sistema é a de que os testes buscam apenas 27 ingredientes ativos de agrotóxicos – somente em 2019, o governo aprovou a comercialização de mais de 400 novos produtos agrotóxicos. “É preciso que haja um monitoramento mais amplo, até para se verificar de fato que tipo de agrotóxicos está sendo usado em determinada região”, completa a professora Gisela Umbuzeiro, da Unicamp.
O Ministério da Saúde estuda aumentar o número de ingredientes que precisam ser testados e os valores de referência. Mas, além da lista mínima fixada em âmbito federal, cada estado deve editar normas complementares à norma nacional a fim de atender às especificidades de seus territórios. Um exemplo é a norma editada pelo Rio Grande do Sul, que estabeleceu a obrigatoriedade do monitoramento de agrotóxicos que não constam na lista nacional, mas que são muito usados nas lavouras gaúchas. Atualmente, o estado testa, além dos 27 exigidos por lei, outros 46 pesticidas na água.
Especialistas apontam ainda outros problemas que comprometem a credibilidade dos dados armazenados no Sisagua, como a falta de verificação dos dados fornecidos pelas empresas de abastecimento, que podem ser inseridos pelas próprias empresas.
“Não existe uma avaliação crítica do que é colocado. Se, por um lado, as concessionárias precisam analisar as amostras, por outro é necessário que depois exista a verificação se as normas estão sendo atendidas”, reitera Umbuzeiro.
O procurador Almeida aponta ainda um conflito de interesses neste sistema. “Como as próprias empresas que são responsáveis por alimentar o sistema vão registrar a presença de agrotóxicos na sua água?”, questiona.
Cadeia de responsabilidades e penalidades
Segundo o procurador Almeida, todos esses problemas “evidenciam como empresas e órgãos públicos nem sempre cumprem seu papel, o que, na prática, faz com que hoje o Sisagua não funcione efetivamente como ferramenta de verificação”.
Para que a complexa engrenagem funcione, a responsabilização administrativa ou judicial dos órgãos envolvidos deveria começar do local (municipal) para o nacional, segundo Marco Antonio Ghannage Barbosa, Procurador do Ministério Público Federal. Ou seja, primeiro, cobra-se das instâncias municipais (empresas de fornecimento e da vigilância sanitária); depois, das estaduais (Secretaria do Meio Ambiente) e, por fim, Ministério da Saúde e Ministério Público Federal podem atuar para cobrar os responsáveis, com sanções que podem variar de advertências a multas e ações indenizatórias.
Foi esse o caminho trilhado no Mato Grosso do Sul. O procurador Almeida, do Ministério Público, entrou com um pedido na Justiça pedindo que Estado e União garantissem a realização de testes na água de Dourados – por conta da possível relação entre a contaminação da água com o aumento dos casos de câncer na cidade.
Neste caso, o jogo de empurra está perto do fim: uma sentença determinou em agosto que o governo federal pague uma multa de R$ 90 milhões por descumprimento de uma decisão 2016 que determinava a análise da água consumida pela população. A decisão, da qual ainda cabe recurso, determina que o valor seja usado na construção de um laboratório para que, enfim, os testes sejam realizados.
Medidas como estas são fundamentais para garantir que os órgãos envolvidos cumpram seu papel, sobretudo em um cenário atual em que o Governo Federal tem ampliado e acelerado o processo de liberação de novos ingredientes ativos de agrotóxicos para uso no país. No entanto, enquanto mais da metade dos municípios brasileiros não realizarem os testes definidos em lei, grande parte da população brasileira continuará no escuro sobre a real presença de agrotóxicos nas torneiras da sua cidade.