PUBLICADO NO BRASIL DE FATO
POR CATARINA BARBOSA
Os relatos de tortura em presídios do Pará levaram o Ministério Público Federal (MPF) a pedir o afastamento do Coordenador da Força de Intervenção Penitenciária (FTIP), Maycon Cesar Rottava, que se tornou réu em uma ação por improbidade administrativa, que aponta tortura, maus-tratos e abuso de autoridade nas unidades penitenciárias que estão sob intervenção federal.
O governo paraense nega as acusações, mas pediu à Justiça e obteve a proibição de entrada dos advogados da Ordem dos Advogados do Brasil no Pará (OAB/PA) – responsável por grande parte das denúncias – de entrar nos presídios paraenses por 30 dias, a contar de 2 de outubro.
O ato é encarado como um retrocesso para os advogados da instituição. O presidente da OAB/PA, Alberto Campos, reforçou que a medida vai além da violação das prerrogativas da advocacia. Para ele, o que está em jogo é o estado de exceção implantado no sistema penitenciário do Pará.
“Um dos primeiros atos dos anos de chumbo [da ditadura militar], qual foi? Foi a suspensão do habeas corpus. Qual é o primeiro ato desse superintendente ao editar as portarias? É afastar a advocacia de dentro do presídio. É isso que eles querem. Eles não querem a voz da advocacia, porque a voz da advocacia é a única que fala por aqueles que não têm voz”, comparou.
A FTIP atua no Estado desde o massacre ocorrido no Centro de Recuperação de Altamira, no sudeste do Pará, onde 58 pessoas morreram. Na ocasião, os presos chegaram a ficar uma semana no local usando, apenas, cueca, sendo privados de higiene, comida e submetidos a espancamentos.
Apesar de afastado do cargo de coordenador da FTIP, Maycon Rottava acompanhou o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro e a comitiva do governador Helder Barbalho (MDB) em visita ao Complexo penitenciário de Santa Izabel, localizado na região metropolitana de Belém, capital do Pará, na última segunda-feira (7).
O advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PA, José Maria Vieira reforça que as movimentações tanto do governo estadual, quanto federal seguem não só no sentido de desconstruir a tortura, mas de fazer com que a sociedade aceite que a crueldade é normal.
“Houve uma mudança na chave. O Estado pode usar a violência. O Estado é o único ser da constituição que tem o direito de usar a violência. Mas o que ele está fazendo é dizer que isso é normal, que isso tem que ser banalizado. Isso está errado. Se você conversar com esses agentes, esses superintendentes, o ministro. Se você conversar com eles, eles acreditam piamente que o que estão fazendo não é tortura. Eles estão simplesmente, banalizando, simplificando a violência, a barbárie”, reforça.
A proibição dos advogados da OAB/PA consta em decisão assinada pelo juiz da Vara de Execuções Penais, Deomar Alexandre Barroso. Segundo a decisão, o impeditivo busca “não apenas a segurança e disciplina do interior das casas penais, mas também tem por escopo preservar a própria segurança das autoridades judiciais em atividade de inspeção carcerária, pois o risco iminente pode afetar qualquer pessoa, dada a peculiaridade do ambiente carcerário inclusive pessoas ocupando função de autoridade do sistema judicial”.
A multa em caso de descumprimento é de R$ 50 mil por dia. A OAB/PA reforça que não se curvará diante das ilegalidades e continuará tomando as medidas cabíveis previstas na Constituição Federal de 1988.
Empalamento que não é tortura
A palavra “tortura” tem origem no latim e significa suplício, martírio ou tormento, que pode ser tanto físico quanto psicológico.
Apesar de a oficialidade acreditar que não há tortura nos presídios paraenses, no dia 4 de setembro, as detentas do Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua, na região metropolitana de Belém (PA), denunciaram que os homens da FTIP as obrigaram a sentar nuas em formigueiros, além de espancá-las e privá-las de água e comida.
No pedido de liminar do MPF pelo afastamento do coordenador da FTIP há o relato de que os agentes pegaram o cabo de uma arma calibre 12 e introduziram no ânus de um detento.
A crueldade é intitulada empalamento, uma prática de tortura sádica, que consiste na introdução de uma estaca ou qualquer objeto pontiagudo, no ânus ou vagina da vítima. Segundo o documento, o homem empalado foi atendido por médicos e retirado da unidade penitenciária em uma ambulância.
“Eu os vi pegando o cabo de uma doze e introduzindo na bunda de um rapaz. Foram dois agentes, ele estava em posição de procedimento, ou seja, com as mãos na cabeça. Tentaram primeiro introduzir no ânus dele um cabo de enxada, mas não conseguiram, aí conseguiram com o cabo da doze; inclusive, eu vi esse rapaz saindo de ambulância e os médicos atendendo ele; não sei o nome, mas muitas pessoas viram; devido o estado que ele ficou, teve que ser recolhido da casa penal”, diz o relato que consta no documento.
As denúncias contra a atuação da Força de Intervenção Penitenciária no Pará são muitas. Segundo os advogados da OAB, foram colhidos mais de 100 vídeos relatando as torturas. A FTIP atua no Estado desde o massacre ocorrido no Centro de Recuperação de Altamira, no sudeste do Pará, onde 58 pessoas morreram. Na ocasião, os presos chegaram a ficar uma semana no local usando, apenas, cueca, sendo privados de higiene, comida e submetidos a espancamentos.
O governo do Estado mantém o mesmo posicionamento desde o início das denúncias: nega as torturas e reforça total apoio à Força de Intervenção Penitenciária. No Pará, a atuação da Ftip segue até 27 de outubro.
Vistorias suspensas
Além da proibição dos advogados, as vistorias também foram suspensas nas casas de detenção paraenses.
As denúncias que embasaram o documento do MPF foram feitas com base em vistorias realizadas pelo Conselho Penitenciário do Estado, no Centro de Recuperação Feminino de Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém; e no Centro de Recuperação Penitenciário do Pará 3; e na Cadeia Pública de Jovens Adultos, ambas em Santa Izabel do Pará.
Após as denúncias, a OAB/PA ingressou com medidas para poder garantir os direitos dos presos.
Juliana Fonteles é presidente da comissão de direitos humanos do órgão e presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Pará, – órgão fiscalizador composto por representantes do Ministério Público Estadual e Federal, além da Defensoria Pública e do Conselho Regional de Medicina. Ela afirma que o afastamento do agente marca o início de um processo de justiça, mas a restrição dos advogados apenas reforça o fato que as torturas continuam.
“Foi uma sensação do início da Justiça, porque as torturas não cessaram. Em três presídios nós conseguimos entrar depois de recorrer à Justiça, nós nem precisaríamos porque o Conselho Penitenciário do Estado está previsto na lei de execução penal, ele tem a prerrogativa legal de adentrar nos presídios. Inclusive, inspeção carcerária não se avisa. A sensação também é de que existem órgãos sérios nesse país e nesse Estado. O MPF honra nesse momento a sociedade paraense. Honra e luta pelo princípio da dignidade humana em um momento tão difícil no Brasil e no Pará, onde as instituições estão vivendo um momento de falência e que a defesa dos direitos humanos é criminalizada”, argumenta.
A advogada afirma ainda que a crise no sistema carcerário não é um caso particular do Pará, mas que as iniciativas dos governos estadual e federal tornam a situação paraense muito mais preocupante. “Jamais seremos levianos de dizer que não existia crise carcerária. Mas nesse momento de governo Bolsonaro e nesse momento aqui desde a entrada da Força de Intervenção Federal, a situação se tornou crítica e dramática. São centenas de presos lesionados, feridos, dormindo na pedra, sem toalha, sem lençol, com padrão de lesão, que os vídeos e as fotos por si só falam”, finaliza.