Publicado originalmente no site Brasil de Fato
POR DANIEL GIOVANAZ
Um dos países mais pobres da América Latina, a Bolívia quadruplicou seu Produto Interno Bruto (PIB) desde o primeiro governo Evo Morales, iniciado em 2006, e mantém uma média de crescimento superior a 4,5%. O PIB é a soma de todos os bens e serviços produzidos no país. O desempenho é ainda mais surpreendente se comparado ao de países vizinhos, como Brasil e Argentina, nos quais as economias encolheram nos últimos anos.
O atual presidente, que é candidato à reeleição, costuma valorizar o impacto desses números na vida dos trabalhadores: a Bolívia é o país que mais cresce na América do Sul e reduziu a pobreza extrema de 38,2% para 15,2%. Na última quarta-feira (16), no encerramento da campanha em El Alto, próximo a La Paz, Morales disse que sua provável vitória nas eleições de domingo (20) será a derrota do imperialismo e do neoliberalismo.
Às vésperas das eleições presidenciais, o Brasil de Fato ouviu dois economistas com interpretações divergentes e complementares sobre o crescimento e as perspectivas da economia boliviana.
Petróleo e gás
Marcelo Montenegro, diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), explica que não seria possível sustentar esse nível de crescimento sem a implementação da política de nacionalização dos hidrocarbonetos – petróleo e gás –, iniciada há 14 anos.
Esse processo baseou-se na transferência de empresas privadas para o controle do Estado e, principalmente, na renegociação de contratos de transnacionais, que aceitaram pagar mais impostos.
“Foi fundamental porque, com o decreto de nacionalização, se passou a aplicar um imposto adicional de 32% sobre a exploração de hidrocarbonetos na Bolívia, possibilitando que o Tesouro geral da nação tivesse um nível de recursos mais amplo”, analisa. Ele acrescenta que isso foi fundamental para ampliar o raio de ação do governo para fazer obras, transferências e investimentos. “Deu muito mais solvência à carteira do Estado. Se não fosse aplicada a nacionalização, o tesouro estaria ‘de bolsos vazios’, impedido de aplicar qualquer tipo de política, porque elas dependem de recursos econômicos”, aponta.
Para Carlos Arze, pesquisador do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (Cedla), a nacionalização não se realizou como o prometido, exceto no setor de energia elétrica. “Este modelo ainda favorece muito as transnacionais, que controlam 80% da produção de gás. A participação do Estado varia entre 15% e 20%. Isso é nacionalização?”, questiona.
A estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPBF) não dá conta de extrair todo o petróleo porque tem apenas duas operadoras no país: a Chaco, que é 90% boliviana, e a Andina, que pertence 50% à Bolívia e 50% à espanhola Repsol. Também atuam no país a brasileira Petrobras, a holandesa Shell, a francesa Total, a russa Gazprom e a venezuelana PDVSA.
“Esse ‘milagre econômico’ foi mais por obra do contexto internacional de aumento de preços do que por obra do atual governo”, pondera o pesquisador do Cedla. Questionado sobre as razões que fizeram a Bolívia sobreviver à crise e crescer mais do que os países vizinhos, ele mantém uma postura crítica ao governo Morales. “Nossa economia é muito dependente dos hidrocarbonetos. Eles são quase um quarto de todo o faturamento do Estado. Desde 2005, se levarmos em conta apenas os números tributários, eles representam quase 50%. Por isso, a Bolívia é muito suscetível à variação internacional dos preços, mais que os países vizinhos – que entraram em recessão devido ao alto déficit público, que aqui também temos.”
Enquanto Arze questiona a falta de diversificação da economia boliviana, Montenegro afirma que o país hoje responde a uma demanda mundial por hidrocarbonetos, mas tem condições de se adaptar quando o ciclo do petróleo for superado. “À medida que haja uma substituição energética no mundo, o lítio poderá um dia ter a importância econômica que o gás tem para a Bolívia.”
Investimento público
Desde o início do governo Morales, em 2006, o Estado se multiplicou por três para tentar atender às necessidades materiais dos cidadãos. Esse investimento público, que fortaleceu o mercado interno, ajudou a impulsionar e a dinamizar a economia, segundo Montenegro.
“O fortalecimento da demanda interna é um elemento importante, que já vimos que estabiliza e dinamiza as economias. E, de fato, não é um elemento associado aos governos populistas. É só olhar o caso da Suíça”, compara, citando a eficácia das políticas de distribuição de renda. “Enquanto o Estado seguir investindo no ritmo atual, a taxa de crescimento da economia seguirá acima dos 3%.”
Com um olhar mais pessimista sobre o mesmo tema, Arze chama atenção para o que considera um rápido crescimento da dívida externa e da dívida pública da Bolívia. Nesse sentido, ele questiona a utilização do PIB como termômetro de crescimento e diz que o alto investimento público provoca uma distorção no cálculo. “O setor financeiro e o setor estatal pesam significativamente no PIB boliviano, e nenhum dos dois cria riquezas. Esse cálculo confunde produção com circulação”, critica.
O pesquisador questiona o crescimento econômico por meio do investimento público. “Em termos produtivos, falando em mineração, desde o ano 2005 não há descobertas ou novas prospecções. A Bolívia perdeu reservas de gás. Só o que segura esse crescimento do PIB é o investimento público – em áreas que não necessariamente dão resultado”, acrescenta Arze, citando como exemplo a aposta de Morales no sistema de teleféricos, que revolucionou o transporte coletivo em La Paz.
O fortalecimento da demanda interna fez com que o país se tornasse uma terra fértil para a instalação de multinacionais. O investimento estrangeiro direto no país, que em 2005 girava em torno dos US$ 250 milhões, multiplicou-se por sete, segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal).
Em julho de 2019, a dívida externa pública boliviana de médio e longo prazo atingiu US$ 10,6 bilhões, o equivalente a 24,6% do PIB. O indicador é considerado sustentável na comparação com gestões anteriores, quando chegou a atingir 99%, em 1987.
Perspectivas
Na mesma linha de raciocínio, o pesquisador do Cedla alerta para o aumento da informalidade na Bolívia – que chegou a 70% e impacta negativamente as arrecadações. Como Arze entende que nenhum programa de governo, mesmo os da oposição, sugerem mudanças de paradigma econômico, ele conclui que o país seguirá dependente das exportações de hidrocarbonetos, que estão em queda.
“O Brasil hoje compra metade do gás que um dia comprou da Bolívia. A Argentina reduziu as importações em um terço. A nossa produção caiu de 60 milhões de metros cúbicos diários para 43 milhões”, destaca.
Montenegro acredita que é possível seguir em crescimento caso a receita atual seja mantida e aprofundada, como propõe Evo Morales. Ele avalia que o mesmo não deve ocorrer em caso de vitória do ex-presidente Carlos Mesa, que está em segundo lugar nas pesquisas, ou do senador Óscar Ortiz, que está em terceiro.
“O programa econômico da Comunidade Cidadã [Mesa] tenta se mostrar como continuidade do atual modelo, com certas matizes em algumas variáveis macroeconômicas. O programa do Bolívia Diz Não [Ortiz] é claramente um rompimento, baseado no livre mercado, com uma característica muito mais institucionalista do que econômica – fala em combater corrupção, ‘voltar à República’. Apesar dos disfarces do primeiro e de sua proposta mais gradual, os dois são programas totalmente de direita”, assegura.
Para ele, os partidos da oposição não levam em conta o contexto externo. “Hoje em dia, segundo o FMI [Fundo Monetário Internacional], 90 países estão em recessão econômica. Voltar ao neoliberalismo é um erro grave”, acrescenta. “Os gastos não são fáceis de conter. E, como nenhum programa da oposição propõe seguir potencializando a demanda interna, está claro que a geração de renda vai cair, as arrecadações também, e vamos acabar batendo novamente à porta do FMI.”
A eleição para presidente e vice-presidente, deputados e senadores ocorre no próximo domingo (20). São esperados 6,9 milhões de eleitores. Se nenhum dos candidatos à Presidência superar 50% ou 40%, com dez pontos de vantagem sobre o segundo colocado, haverá segundo turno no dia 15 de dezembro.