Depois de proibir os bailes, chegou a vez de São Paulo vetar o som alto nos carros — e a vítima é a cultura popular.
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Faz dois anos que o Funk Ostentação saiu da baixada santista e dominou as periferias de São Paulo. Releitura do funk carioca, as batidas permaneceram iguais, o que mudou foi o conteúdo: agora o tema é ostentação. Falar de ostentação é falar de carros, motos, jóias, bebidas, mulheres, dinheiro e marcas. O Funk Ostentação chegou em São Paulo em meados de 2011, devagarzinho, em festas de rua, quermesses e outros eventos. Atualmente, é o ritmo mais tocado nas periferias, e suas letras ditam a moda e os hábitos dos jovens.
Este fenômeno poderia ser um prato cheio para entender a juventude brasileira, o capitalismo recente, ou esse novo Brasil que embaralhou as classes e deixou os especialistas com dificuldade de explicá-lo. Afinal, o ritual está sempre dizendo alguma coisa para além do próprio ritual. Porém, ao invés de buscar compreendê-lo e criar espaços para que o funk se manifeste, e até ajustar o que não funciona, o que aconteceu foi que os pancadões de rua foram proibidos em São Paulo.
O fato é que os bailes acontecem nas ruas, juntam uma multidão, e o volume do som é muito alto. Então, a porta da casa de muita gente virou balada. Por conta barulho alto, a vizinhança começou a reclamar. Em 2012, a Prefeitura de São Paulo comandou a “Operação Pancadão”, reprimindo violentamente os bailes, e em Abril de 2013 foi aprovado na Câmara de Vereadores de São Paulo um projeto de lei dos vereadores Conte Lopes (PTB) e Coronel Camilo (PSD). Ele “proíbe a utilização de vias públicas, praças, parques e jardins e demais logradouros públicos para a realização de bailes funk, ou de quaisquer eventos musicais não autorizados”. Uma nova lei foi sancionada por Haddad, agora proibindo música em alto volume nos carros.
O que questiono é por que tanta repressão a uma expressão popular específica. Por que mais uma vez o estado chega à periferia reprimindo uma manifestação cultural que atraía grande parte da comunidade? Não haveria outra forma de resolver um problema cultural que não fosse por meio da repressão seguida de proibição?
A dinâmica de lazer representa uma oportunidade de estabelecer, revigorar e exercitar laços que garantem a rede básica de sociabilidade. O espírito de comunidade, na periferia, é e sempre foi construído pelos próprios moradores, já que o Estado nunca assumiu esse papel.
De fato os bailes de funk ostentação na rua se tornaram um problema nas comunidades. Por não conseguirem se resolver entre eles, a polícia era chamada e intervinha com violência. O problema saiu de dentro das comunidades e foi parar nas televisões e jornais, dando corda para um círculo já conhecido de criminalização da cultura popular.
Em 2012, os bailes funk tiveram destaque nos principais telejornais, e eram associados a drogas, bebidas, promiscuidade e ligação com o crime. E assim, a repressão violenta era justificada. Demonizaram o funk. Se você gosta de funk e é homem, é machista. Se é mulher e vai a um baile, é vagabunda.
Mas nada se difere de uma festa como qualquer outra: som alto, bebida alcoólica, aglomeração de pessoas, que pode às vezes desembocar em confusão. Os funks brasileiros são acusados pelo seu conteúdo fútil e sua batida repetitiva. É possível encontrar muitos outros ritmos musicais com essas mesmas características, nacionais e internacionais, que não sofrem tanta crítica como o funk.
Criminalizar manifestações populares é uma tradição das classes hegemônicas brasileiras desde os tempos coloniais. A mídia, o sistema educacional e os aparelhos do estado estrategicamente constroem um discurso que desqualifica as manifestações populares, e as associam a práticas inferiores, negativas ou ilegais. Enquanto isso, as manifestações culturais da elite são recheadas de explicações que a legitimam como arte, vanguarda, ou o que quer que seja. Quando se trata de funk, discute-se se ele é cultura ou não. Questiona-se a validade da cultura popular, em oposição à erudita.
Quando se discutem políticas públicas para a cultura, deve-se partir do princípio de que todos os gostos devem ser contemplados, todas as manifestações tem igual valor. O acesso à cultura deve ser um direito, e não um privilégio. Os espaços de lazer são escassos na periferia. Por isso, os bailes começaram a ser organizados pelos próprios moradores e na rua. Na periferia, ocorre uma substituição do estado de bem estar social pelo estado penal. Com a polícia chegando violentamente às comunidades, ela não criminaliza apenas o barulho que incomoda, mas o modo de vida, os valores, a cultura, as residências, as famílias, e o funk é o grande culpado.
No mesmo mês em que foi aprovado o projeto de lei que proíbe os bailes funk em São Paulo, o rapper Mano Brown, um dos integrantes dos Racionais MC’s, apareceu em um videoclipe de Funk Ostentação. Essa mistura causou muitas críticas, e muitos fãs de rap (a arte engajada da periferia) não entendiam o que fazia Mano Brown no meio disso.
A participação de Brown nesse videoclipe pode ser lida como estratégica, política. Sua imagem é usada para legitimar o movimento. Afirmando que apoia, Mano Brown está articulando um movimento de integração entre os movimentos populares. Está sugerindo paz e união nas periferias de São Paulo. É simbólica essa união. O movimento hip hop é um dos principais movimentos de formação de cidadania na periferia, desde os anos 1980. Se posicionar ao lado do Funk Ostentação é uma ação política.
Goste-se ou não, o Funk Ostentação é atualmente uma das principais vozes da periferia. A proibição é uma medida racista e social, feita para enfraquecer as comunidades. Por que não caminhar em outra direção, aproveitando esse forte laço social criado em torno do funk para discutir espaços públicos e necessidades dos moradores de periferia?
A atual prefeitura de São Paulo tem se mostrado bastante aberta a receber eventos públicos no centro da cidade, mas é preciso expandir a iniciativa às áreas periféricas. Talvez seja necessário criar locais públicos para festas, criando alternativas de lazer e cultura para os jovens dos bairros, com mais segurança e com menos impacto nas comunidades. É preciso, além de tudo, reconhecer o funk como expressão cultural das comunidades.