Uma coisa é certa: o longa que está causando barulho na Europa é um tédio.
Os franceses sempre gostaram de decadência de todos os tipos. Excessos eróticos foram tema central na literatura, pintura e cinema. Do Marquês de Sade a Proust e a Emmanuelle, o sexo tem ocupado a consciência e o subconsciente gauleses. Sua cultura floresceu com a força de diretrizes paralelas gêmeas – o rigor intelectual obsessivo, a formalidade e a arrogância numa sociedade que tolera amantes, clubes de swing para os ricos e famosos, e todas as formas de prazer da carne.
Agora a França optou por premiar um filme que provavelmente vai se tornar um dos mais controversos e debatidos na memória recente. O júri do Festival de Cannes deu a Palma de Ouro a La Vie d’Adele – Chapitres 1 et 2, um turbodrama do franco-tunisiano Abdellatif Kechiche. O manifesto lésbico de 3 horas conta a história da sedução de uma jovem (Adele Exarchopoulos) por Emma (Léa Seydoux), um espírito livre de vinte e poucos anos.
Além da narrativa gay, há uma cena gráfica de sexo, que dura 10 minutos ininterruptos, em que as duas se lambem, beijam, chupam e fazem a posição da tesoura, chegando ao clímax merecido, testando a paciência dos espectadores, bem mais que a das atrizes. Esses encontros sexuais prolongados têm provocado uma onda de discussão sobre sua intensidade e realismo evidente e não simulado. Seydoux, 27 anos, uma jovem estrela do cinema francês, e Exarchopoulos, de 18, relativamente desconhecida, abraçaram o desafio de interpretar o amor lésbico com intensidade, alternadamente ferozes e doces.
Como vários países ao redor do mundo, incluindo a França, estão começando a legalizar o casamento gay, La Vie d’Adele é um estudo de caso relevante. Embora longo demais, o filme serve como uma cartilha sobre o amor gay, o sexo e a paixão. Ainda que imperfeito, autoindulgente e, às vezes, panfletário, ele ajuda a legitimar o amor gay de maneira mais sedutora e atraente do que os clichês de Brokeback Mountain, por exemplo.
O fato de Cannes e um júri liderado por um diretor conservador como Spielberg darem o prêmio a Adele (as duas atrizes também ganharam a palma, assim como o diretor) é evidência de um universo moral em rápida mudança na sociedade ocidental. Claro, é duvidoso que um filme que mostrasse dois homens envolvidos em ginásticas com seus membros oscilantes fosse tratado com tanta tolerância e aceitação. Mas a visão de duas mulheres jovens e atraentes se apaixonando e se envolvendo em relações sexuais extasiantes conquistou Cannes e um amplo consenso crítico. Havia uma certa vontade irresistível de premiar Adele tanto pela sua audácia como por seus dons artísticos.
Livremente adaptado por Kechiche e pela co-roteirista Ghalia Lacroix da graphic novel de Julie Maroh, o filme explora a vida de Adele, nascida na classe trabalhadora da cidade de Lille, norte da França. Depois de um breve romance e uma aventura sexual com um colega, Thomas, ela sucumbe aos encantos da sedutora Emma, uma sofisticada estudante de arte com o cabelo tingido de azul e lábios ofegantes e volumosos. As diferenças de classe logo são varridas pelo destino amoroso.
Embora os espectadores vão apreciar a odisseia romântica, o longa atinge seu apogeu nas cenas de sexo que exaltam as virtudes do amor lésbico para um público de massa. O filme habilmente borra a diferença gráfica entre o pornô softcore e o cinema de arte. Desta forma, o aspecto erótico ousado desarma qualquer falta de conforto que se possa ter com o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo.
Grande parte do poder do filme reside na desenfreada e sublime performance de Léa Seydoux e no talento fresco de Adele Exarchopoulos. Sexo explícito não é inteiramente novo no cinema de arte, mas as próprias atrizes foram forçadas a questionar se o filme cruzou a linha imaginária entre a arte e a pornografia (definida estritamente como algo que mostra o sexo pelo sexo, com o objetivo de excitar o espectador).
É simbólico que os franceses tenham escolhido premiar a história de uma espécie de amor outrora proibida, num momento em que milhares de manifestantes conservadores marchavam em oposição à passagem da legislação do casamento gay. Mas o fato de debatermos uma cena longa entre duas atrizes maiores de idade representando uma atividade tão banal e corriqueira como o sexo é um tema mais urgente para a nossa reflexão coletiva.
Julie Maroh, autora da graphic novel, não gostou do que viu. “Como feminista e lésbica, não posso endossar o modo como Kechiche lidou com essas questões”, disse. “Foi uma exibição brutal e cirúrgica do chamado sexo lésbico, transformando-o em pornografia, o que me deixou pouco à vontade”. Ela afirma que, quando foi assistir, “todo o mundo (na platéia) estava dando risadinhas… e as únicas pessoas que não riam eram os caras que estavam muito ocupados festejando seus olhos com a encarnação de suas fantasias na tela”. Para Maroh, as protagonistas não sabiam bem o que fazer: “Parece-me que era isso o que estava faltando no set: lésbicas”.
Mas o filme não deve ser elogiado ou criticado por causa disso. Podemos traçar uma analogia útil com o romancista britânico Edmund Wilson, cujo ensaio “Who Cares Who Killed Roger Ackroyd?” (“Quem Se Importa Com Quem Matou Roger Ackroyd?”) sugeriu que não devemos dar muita bola para os esquemas narrativos dos escritores de mistério. Não deveria haver qualquer confusão sobre La Vie d’Adele além do tédio da duração de 3 horas, disfarçada de grande arte.
Afinal, quem se importa com quem comeu Adele Exarchopoulos?