O apaixonado e incendiário triângulo amoroso formado por Civita, Mino e a Veja.
Uma das mais duradouras e interessantes lutas na mídia brasileira não cessou com a morte de um dos contendores.
Uma semana depois da morte de Roberto Civita, apareceu enfim sua versão sobre o caso Mino Carta.
Entre as memórias publicadas na edição da Veja que o homenageou estava a dramática saída de Mino, no final dos anos 1970.
Curiosamente, no relato de Roberto Civita a figura principal não é nenhum dos dois, mas Victor Civita, fundador da Abril.
Naqueles dias, VC, como era chamado, estava em seus últimos dias de comando executivo da empresa.
Poucos anos depois, ainda lúcido e fisicamente inteiro, ele iria dividir a Abril em duas para impedir que, depois de sua morte, os irmãos Roberto e Richard se envolvessem numa briga capaz de destruir o negócio.
Do ponto de vista empresarial, a atitude de VC virou um clássico nas corporações familiares brasileiras.
Foi caso louvado, estudado e depois amplamente copiado por patriarcas que suspeitavam que seus filhos poderiam não se entender muito bem na hora da herança.
De certa forma, o afastamento de Mino da direção da Veja foi o primeiro gesto capital de VC para sair de cena.
Talvez ele receasse que, sem ele, o jovem e inseguro primogênito não conseguisse resolver o caso, dada a senioridade de Mino.
Ou pode ser que ele tenha se movido pela mesma lógica que o fez preservar a corporação ao reparti-la entre os filhos: a preocupação de que, sem ele, os desentendimentos entre Roberto e Mino pusesse em risco a revista.
O relato de Roberto é divertido, se você exclui o sofrimento de Mino, naturalmente.
“Não sei o que seria de vocês sem mim”, Mino disse ao patriarca, segundo a versão de Roberto.
“Nós também não, mas vamos saber a partir de amanhã”, teria respondido VC.
Roberto jurou pelo próprio sangue que foi esta a história, em contraste com a versão que correu e corre de que a ditadura militar liberou um grande empréstimo para a Abril em troca da cabeça de Mino.
Empréstimos e facilidades governamentais de toda natureza fazem parte da história de todas as grandes empresas jornalísticas brasileiras.
Não há dúvida de que de tão mimadas com o dinheiro público acabaram, todas elas, tendo sérios problemas de gestão.
O Estado praticou desde sempre um assistencialismo irrestrito com as companhias de mídia, e isso cobrou o preço em excelência gerencial: um telefonema ao presidente poderia resolver um problema que demandaria talento e suor.
Tudo isso posto, o mais provável é que, no caso de Mino, o que tenha acontecido é mesmo o desejo de VC de encerrar uma relação que se tornara complicadíssima.
É possível que Mino tenha superestimado sua força. A família Civita, é verdade, estaria em apuros se coubesse a ela fazer a Veja, como Mino fazia.
Escolher as capas, escrever os editoriais, reescrever os textos, orientar os jornalistas: este tipo de coisa nem pai e nem filho poderiam fazer.
Mas, atrás de Mino, havia uma equipe jovem e brilhante que podia cuidar das questões operacionais.
O único risco, para a família, é que a redação acompanhasse Mino na saída, algo que ele, aparentemente, desejou que acontecesse. Muitos jornalistas saíram em solidariedade ao diretor caído, mas a base da redação ficou.
Os dois redatores-chefes, JR Guzzo e Sérgio Pompeu, mal passados dos 30 anos, viraram diretores de redação.
A relação com eles foi bem mais fácil.
Depois de Mino, nenhum diretor teve o poder dele: em seu contrato, estava estipulado que a família não interferiria na edição em curso.
Guzzo, um editor excepcional e pragmático, logo cresceu e se tornou diretor de redação sozinho.
Sérgio Pompeu virou diretor-adjunto, e pouco depois foi afastado para que houvesse um lugar à altura do talento exuberante de Elio Gaspari.
Guzzo e Elio, nos anos 1980, formaram uma dupla extraordinária, com a qual tive a sorte de aprender muito no começo da carreira, e fizeram da Veja uma admirada, invejada e copiada escola de jornalismo.
Nos quinze anos sob Guzzo, encerrados no começo da década de 1990, a Veja chegou ao mítico patamar de 1 milhão de exemplares, do qual, a rigor, jamais sairia.
Nos bastidores, afastado Mino, Roberto tratou de ocupar os espaços. Um momento simbólico dos novos tempos foi quando a tradicional Carta ao Leitor deixou de ser assinada pelos diretores. (Guzzo regularmente e Elio nas férias do titular, habitualmente em janeiro.)
O papel de editor da Veja, pós-Mino, arrebatou Roberto Civita. Nos 45 anos passados desde a resposta de VC a Mino sobre o futuro da revista, Roberto jamais se afastou de sua paixão.
Em todas as reestruturações da Abril, ele manteria, até sua morte, a revista sob sua órbita: jamais um diretor de redação da Veja responderia a outra pessoa.
Num certo momento dos anos 2000, o então presidente executivo Maurizio Mauro, levado à Abril durante uma crise financeira que quase a quebrou, quis profissionalizar a direção editorial da empresa.
Propôs a Roberto Civita que Guzzo fosse nomeado vice-presidente editorial. A Veja responderia a Guzzo e Guzzo a Maurízio.
Roberto Civita disse a ele que não voltasse com o assunto. Não muito depois, Maurizio soube que seu contrato com a Abril não seria renovado.
E assim Roberto Civita deu seguimento, até o fim da vida, aos 76 anos, ao incondicional – e em certa medida irracional – caso de amor com a Veja, tornado complicado nos últimos tempos pelo avanço da internet que vai matando a mídia impressa.
Nas memórias que apareceram na edição de tributo da Veja, Roberto disse que Mino pareceu ter morrido ao ser tirado da direção, há quase meio século.
É uma imagem forte, e que faz pensar. Se Mino “morreu” e Roberto “nasceu” ali, é possível que a raiva eterna de Mino se deva ao fato de ter enxergado em Roberto um usurpador.
Tão diferentes entre si, os dois tiveram em comum a paixão pela Veja, o projeto da vida dos dois. Cada um do seu jeito, jamais conseguiram se livrar da obsessão pela revista em cuja fundação e primeiros anos estiveram juntos, como num triângulo amoroso.