Publicado no Amazônia Real
A Polícia Civil do Pará realizou uma operação na manhã desta terça-feira (26) em Santarém, na qual prendeu três brigadistas voluntários e um funcionário da organização não-governamental Projeto Saúde e Alegria sob suspeita de acusação de atear fogo na Área de Preservação Ambiental (APA) Alter do Chão e desviar recursos de doações do ator Leonardo DiCaprio. A operação “Fogo do Sairé” chamou a atenção da organização de direitos humanos Anistia Internacional por falta de transparência nas investigações.
A operação policial recebeu grande aparato, cobertura da imprensa e publicidade no site do governo de Helder Barbalho (MDB), apoiador do presidente Jair Bolsonaro, que chegou a acusar ONGs de serem responsáveis pelos incêndios florestais na Amazônia em agosto deste ano. As declarações do presidente foram repudiadas em nível internacional.
“Não há, até o momento, informações sobre as investigações ou os procedimentos adotados pelas autoridades contra os acusados que justifiquem a decisão pela prisão, apenas relatos de entrada na sede da organização Saúde e Alegria, onde funcionava a Brigada de Alter do Chão, e coleta de documentação, o que inspira preocupação na Anistia Internacional em relação à transparência das investigações”, afirmou Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil. Segundo Jurema, “acontecem prisões sem qualquer transparência ou informação oficial sobre procedimentos adotados pelas autoridades em relação aos acusados em Alter do Chão”.
A assessoria do Projeto Saúde e Alegria informou à Amazônia Real que a Brigada de Alter do Chão, diferente do que diz a nota da Anistia Internacional, não funciona na sede da organização.
Sem dinheiro de DiCaprio
Em coletiva, o delegado José Humberto Melo Jr., coordenador da operação “Fogo Sairé”, afirmou que começou a investigar a movimentação financeira das contas bancárias da instituição dos brigadistas, o Instituto Aquífero de Alter do Chão. “Percebemos que a pessoa jurídica deles conseguiu um contrato com a WWF. Venderam 40 imagens para a WWF para uso exclusivo por R$ 70 mil, e a WWF conseguiu doações com o ator Leonardo DiCaprio no valor de US$ 500 mil para auxiliar as ONGs no combate às queimadas na Amazônia”, disse Melo Jr.
O que o delegado parece desconhecer é que, no dia 26 de agosto, a fundação ambiental do ator norte-americano Leonardo DiCaprio, que é reconhecido por seu ativismo e por apoiar várias organizações no mundo, prometeu doar 5 milhões de dólares (20,5 milhões de reais) para preservar a Amazônia e combater os incêndios. Inúmeras organizações ambientais brasileiras foram beneficiadas com as doações.
“Earth Alliance, criada pelo ator norte-americano e os filantropos Laurene Powell Jobs (viúva do fundador da Apple) e Brian Sheth, anunciou em seu site, neste domingo, o lançamento do Amazon Forest Fund. A floresta amazônica está em chamas, com mais de 9.000 incêndios florestais queimando paisagens delicadas e insubstituíveis no Brasil esta semana”, diz o comunicado publicado em reportagem do site El País.
Mas as doações do ator não foram recebidas pela organização não governamental internacional WWF-Brasil, que atua no país há mais de 20 anos no combate aos desmatamentos na Amazônia. Em nota divulgada nesta terça-feira (26), o WWF-Brasil salientou que não adquiriu nenhuma foto ou imagem da Brigada de Alter do Chão, nem recebeu doação do ator Leonardo DiCaprio. “Tais informações que estão circulando são inverídicas. O WWF-Brasil está acompanhando desde o começo o desenrolar da operação e está em busca de informações mais precisas das acusações”, diz a nota.
Os quatro brigadistas voluntários da Brigada Alter do Chão receberam ordens de prisão preventiva determinadas pelo juiz Alexandre Rizzi, da 1ª Vara Criminal de Santarém, ainda em suas residências na manhã desta terça-feira. São eles: Daniel Gutierrez Govino, João Victor Pereira Romano, Marcelo Aron Cwerver e Gustavo de Almeida Fernandes, funcionário da organização Saúde e Alegria.
O coordenador do Projeto Saúde e Alegria, Caetano Scannavino, em entrevista coletiva em Brasília, onde participa do Fórum Nacional Permanente em Defesa da Amazônia, no Congresso Nacional, declarou: “nesses 31 anos de Saúde e Alegria, hoje, foi o dia mais triste da nossa história. Jamais pensamos que isso iria acontecer”.
Caetano falou também sobre a falta de transparência da operação policial. “Nesta manhã, a Polícia Civil chegou ao nosso escritório de maneira truculenta, portando armas como metralhadoras sem a gente saber o porquê e qual a acusação. Sem, inclusive, decisão judicial, só com um mandado de apreensão sem as especificidades”, revelou.
Nesta quarta-feira (27), o advogado Wlandre Leal, que defende os brigadistas, disse ingressará com um pedido de revogação das prisões preventivas durante a audiência de custódia na 1a Vara Criminal de Santarém. Leal afirmou, em entrevista à Amazônia Real, vai argumentar que os acusados são réus primários, sem antecedentes criminais, com residência fixa, e ocupação laboral lícita.
“Na verdade os suspeitos não são criminosos, são heróis que trabalham para apagar o fogo da floresta, e não para atear fogo na floresta como estão sendo acusados, mas isso também já estará provado”, afirma Leal.
Como foi a operação?
A investigação da operação “Fogo Sairé” foi aberta em 14 de setembro a pedido do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) para apurar a autoria dos incêndios florestais na APA Alter do Chão, que tem 16.180 hectares. Procurado pela agência Amazônia Real, o MPPA informou hoje que não teve acesso ao conteúdo da apuração da Polícia Civil. Os advogados dos suspeitos dizem que não tiveram acesso às provas, conforme apurou a reportagem.
Com a mobilização de 30 homens da Delegacia Especializada em Conflitos Agrários de Santarém (Deca) e Núcleo de Apoio à Investigação (NAI), com o apoio da Diretoria de Polícia do Interior (DPI), a operação “Fogo Sairé” da Polícia Civil do Pará iniciou às 5h em Santarém, no oeste do estado.
A polícia também cumpriu sete mandados de busca e apreensão de documentos, um deles, dentro da sede da Saúde e Alegria, instituição que atua na Amazônia desde 1987 com comunidades ribeirinhas e indígenas em situação de risco e vulnerabilidade do oeste paraense e reconhecida internacionalmente.
Na operação “Fogo Sairé”, o titular da DPI, delegado José Humberto Melo Jr., disse que suspeita que os brigadistas são autores dos incêndios pois eles “tinham informações e imagens privilegiadas dos focos de incêndio.”
“Eles filmavam, publicavam e depois eram acionados pelo poder público a auxiliar no controle de um incêndio que eles mesmos causavam. Toda vez alegavam surpresa ao chegar no local, mas não havia outra possibilidade lógica”, justifica o delegado em nota publicada no site oficial do governo do Pará.
Com relação à busca e apreensão na sede do Projeto Saúde e Alegria, o delegado José Humberto Melo Jr. disse, em nota, que “investimentos direcionados a essa ONG vinham de fora do país, e isso sustentou a iniciativa de uma medida cautelar solicitando a interceptação telefônica dos envolvidos. Foram mais de dois meses de investigação até haver indícios suficientes de autoria e materialidade para pedir as prisões preventivas”.
Melo Jr. afirmou ainda que os “doadores são vistos como também vítimas nas investigações, pois estariam sendo influenciados a investir tendo acesso a fotos e vídeos desses incêndios supostamente provocados. Em uma das doações, a ONG recebeu R$ 300 mil, com uso confirmado de 1/3 desse valor. A Polícia Civil ainda não sabe o que foi feito do restante”.
O que diz a defesa dos brigadistas?
Os incêndios florestais aconteceram entre 14 a 18 de setembro na APA Alter do Chão. Além de homens do Corpo de Bombeiros e Grupamento Aéreo de Segurança Pública do Pará (Graesp), do Exército, da Prefeitura de Santarém, da Polícia Civil e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), atuaram no combate ao fogo os brigadista voluntários da Brigada de Alter do Chão – organização independente, recém-formada no distrito de Alter do Chão. Esses brigadistas testemunharam a morte de milhares de animais, entre eles, tatus, tamanduás, abelhas, gafanhotos, serpentes, conforme relataram à agência Amazônia Real.
Os voluntários começaram a trabalhar em agosto de 2018, quando participaram de um curso ministrado pelos Bombeiros Militares, Defesa Civil e Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Turismo de Belterra, que culminou com a formação de mais nove brigadistas.
De acordo com o advogado dos brigadistas, Wlandre Leal, eles já estavam colaborando com investigações da Polícia Civil do Pará e que dois dos suspeitos já haviam prestado depoimento, fornecido documentos de finanças e de renda espontaneamente.
“A prisão dos rapazes nos causou grande espanto, porque a defesa entende que, nesse momento, ela era desnecessária. Os requisitos autorizadores da prisão preventiva não estavam evidenciados, eles poderiam responder ao processo e às investigações em liberdade sem problema nenhum, já que não estavam se furtando de prestar informações à polícia”, disse Leal.
“A polícia age com a prova que interessa à ela com diálogos, escutas telefônicas, fotos, postagens em redes sociais, em vídeos. Mas todas as atividades dos brigadistas são documentados e registrados em vídeos e fotos”, destaca o advogado.
Leal disse que, ao conseguir ter acesso ao inquérito policial, constatou que se trata de uma “representação da prisão preventiva que são de 90 folhas, que não há nenhum indício, nenhuma prova cabal de participação deles no incêndio criminoso”.
“São meras conjecturas nesse momento, mas mesmo assim já estará provado ao longo da instrução processual toda a inocência dos acusados”, afirma Wlandre Leal.
Ainda segundo o advogado, os suspeitos negam a autoria dos crimes. “O que se deve deixar bem claro aqui é que esses brigadistas estavam agindo em total conformidade com a lei. A questão das doações, do possível dinheiro desviado de doações não procede de forma alguma, tanto que eles têm em mãos toda a contabilidade probatória dos dinheiros dos valores recebidos e dos valores repassados. Foram valores para despesas de transporte, de alimentação, de equipamentos, tudo estará provado ao longo da instrução processual”, explicou.
Doações para equipamentos
Em nota, o WWF-Brasil disse que neste ano reforçou sua atuação “por ocasião do aumento escandaloso das queimadas na região amazônica”. A organização informou que desenvolveu o Plano de Emergência para Combate de Incêndios envolvendo ao menos 15 instituições e possuiu contrato de Parceria Técnico-Financeira com o Instituto Aquífero Alter do Chão para a viabilização da compra de equipamentos para as atividades de combate a incêndios florestais pela Brigada de Alter do Chão, no valor de R$ 70.654,36.
Segundo o WWF, o recurso viabilizou a compra dos equipamentos para o combate ao fogo, dentre os quais abafadores, sopradores, coturnos e máscaras de proteção.
“Tendo em vista a natureza emergencial das queimadas, o repasse foi realizado integralmente e, neste momento, a instituição está na fase de implementação de atividades e prestação de contas, com a comprovação da realização do que foi acordado”, disse o WWF-Brasil.
“Soa como uma piada”
Ainda na entrevista coletiva em Brasília, o coordenador do Projeto Saúde e Alegria, Caetano Scanavinno, falou sobre as suspeitas da Polícia Civil. Ele disse que existe um movimento para rebaixar o trabalho de ONGs e do movimento indígena. “A gente lamenta, pois a questão ambiental não é de direita e nem de esquerda, mas diz respeito a todos nós”.
Sobre as possíveis provas dos crimes, Scanavinno disse que “até agora não se falou o que e como, de que eles atearam fogo à floresta em Alter do Chão. Para mim, isso soa como uma piada, a não ser de que esses meninos sejam atores de Hollywood”.
“O Saúde e Alegria, há 20 anos, sempre nos meses de agosto e setembro, promove campanhas de PrevFogo e de formação de novos brigadistas. Ficamos felizes com a formação de uma brigada em Alter do Chão. Tenho uma rede de contatos que pedem apoio nas redes sociais na divulgação de campanhas com vaquinhas e crowdfunding. Vou continuar apoiando, porque a gente precisa de apoio, pois a Amazônia está queimando, sempre queimou, mas agora está queimando mais”, explicou.
“Uma coisa é o Saúde e Alegria, outra é a Brigada. Eu conheço pessoalmente os brigadistas e são pessoas em quem sempre tive confiança, são pessoas de boa índole, pessoas que se voluntariaram, e não de agora, mas desde anos anteriores para combater os incêndios florestais no Pará. As queimadas sempre aconteceram e são uma realidade na Amazônia”, disse.
“Espero que tudo seja esclarecido, pois só posso responder pelo Saúde e Alegria. Essa situação tem que ser profundamente apurada”, concluiu Caetano Scanavinno.