A esquerda perdeu nas últimas eleições presidenciais no Uruguai, mas na visão do sociólogo Denis Merklen, nascido no país e professor da Universidade Sorbonne Nouvelle em Paris, a derrota precisa ser relativizada. Ele se diz surpreso com a recuperação de votos da esquerda nas últimas horas, o que atribui ao “despertar” da velha e da nova militância do Frente Amplio, coalizão de partidos que governou o Uruguai de 2005 até então.
Na análise do pesquisador, um dos principais na França sobre classes populares, os discursos simultâneos dos militares 48 horas antes do segundo turno pregando extirpar o marxismo do país e voltar aos valores da “família tradicional” haviam encantado principalmente o eleitorado mais rural do país mas que acabou em parte mudando de ideia.
“O que essas declarações provocaram foi uma tomada de consciência de muita gente que utilizava esse voto para protestar e percebeu que estava indo longe demais”. O trabalho da militância, aponta, poderia até mesmo ter virado o resultado se não tivesse sido tardio.
Nesta entrevista ao DCM, Merklen fala dos impactos desse resultado para a região, dos desafios de revitalização do campo progressista, da memória da ditadura uruguaia e dos paralelos entre os últimos anos da vida política do país com o Brasil. Um verdadeiro guia para a reflexão da esquerda brasileira e sul-americana.
DCM: Como você analisa os resultados das últimas eleições presidenciais no Uruguai?
Para quem estava acompanhando de perto é ao mesmo tempo um resultado esperado e uma surpresa. Com as eleições presidenciais, no primeiro turno, também se elegem deputados e senadores, nas duas câmaras. Então, nesse ponto foi exatamente como esperávamos.
No segundo turno, houve uma recuperação de votos muito grande por parte da esquerda, do Frente Amplio (coalizão do presidente Tabaré Vázquez) foi uma grande surpresa para nós e para a população. Ele, inclusive, poderia ter ganhado. Ficou por poucos 30 mil votos de diferença.
DCM: E o que provocou essa recuperação de votos?
Houve vários fatores. Uma parte importante da derrota no primeiro turno foi uma campanha muito ruim do Frente Amplio, um problema com os candidatos a presidente e a vice-presidente na sua capacidade de mobilizar a população.
Face a esse fracasso, despertou-se de maneira muito surpreendente a velha e a nova militância da Frente Ampla, o velho reflexo militante de toda a esquerda uruguaia, que estava um pouco adormecida com o fato de ter estado no poder.
Diante do perigo de perder, houve realmente um fenômeno de mobilização muito grande da militância, que decidiu sair às ruas para disputar os votos cara a cara, falando com os vizinhos, a maneira que a esquerda sempre soube fazer; socializar, mobilizar e conscientizar o eleitorado, não confiando na capacidade de mobilização dos candidatos. O fato de perder a confiança em seus candidatos fez com que a base do Frente Amplio se mobilizasse. E isso deu resultados muito positivos.
Por outro lado, frente a esse problema, o Frente Amplio decidiu mudar o eixo da campanha e dar protagonismo ao velho ex-presidente e militante Pepe Mujica, que foi, com seus oitenta e tantos anos com muita dificuldade, recorrer o interior do Uruguai, onde o candidato do Frente Amplio não conseguia chegar, digamos. Assim houve uma recuperação de votos muito grande, sobretudo no eleitorado popular que havia se voltado para a extrema direita, para o qual o candidato Martinez, do Frente Amplio , não tinha discurso, não sabia o que dizer.
E provavelmente, no último momento, Manini Rios, um militar, que 40 horas antes da votação fez uma declaração muito reacionária, muito vinculada a uma visão de extrema direita, que o Uruguai achava ter esquecido no seu passado e esse homem resgatou. Isso provocou uma reação muito forte. E agora se sabe que a grande maioria dos votos que o Frente Amplio havia perdido, perdeu nesse setor. E foram esses votos que recuperou majoritariamente.
Essa conjunção de fatos foi o que fez a essa recuperação de votos fazendo com que a derrota da esquerda não tenha sido percebida como uma derrota total, mas uma revitalização de um certo modo da esquerda.
DCM: Os militares justamente publicaram um comunicado dias antes do segundo turno dizendo: “A tentativa clara de destruir a família tradicional (…) uma política externa corrupta e ditada por Havana (…) financiada com o dinheiro sujo da corrupção venezuelana (…) O marxismo deve começar a ser extirpado do horizonte do nosso destino nacional. Viva a pátria!”. De que forma percebe essa declaração?
Houve dois fatos simultâneos na sexta-feira antes das eleições. Um foi a declaração de Manini Rios, o ex-general. E a outra foi um comunicado de um círculo de militares, publicado de maneira praticamente simultânea. E isso foi o que provocou essa reação da cidadania.
Efetivamente há um núcleo de extrema direita no Uruguai que tem sua expressão política, mas que conquistou muito mais votos do que o que esse setor representa no primeiro turno, por outras razões.
Estamos aqui na França, então podemos comparar à relação que existe entre o velho Front National (partido de extrema direita) da França, de Jean-Marie Le Pen e Marine Le Pen, que são sem sombra de dúvida a expressão de um movimento de ultradireita, mas que despertam e conseguem canalizar uma forma de protesto social, que transcende em muito essa ultradireita.
Então o que essas declarações (dos militares) provocaram foi uma tomada de consciência de muita gente que utilizava esse voto para protestar e percebeu que estava indo longe demais.
Agora temos que ver nos próximos anos se essa força política vai se consolidar, se ela vai conseguir construir um espaço ou se vai ficar isolada novamente. Veremos o grande desafio da esquerda uruguaia. Vão poder construir um espaço eleitoral à direita da direita? Lembremos que eles conseguiram 10% dos votos. Isso no Uruguai é muitíssimo. Vão conseguir consolidar esse espaço ou foi uma forma de protesto social?
Muito provavelmente, quando você leu esse trecho do comunicado das Forças Armadas, de círculos militares, há algo que exasperou e provocou uma reação epidérmica entre as classes populares do interior do país. E isso veio de um monte de leis relacionadas à sexualidade, com a questão do gênero, dos homossexuais.
A última lei que foi votada recentemente protege pessoas transsexuais, que têm um problema de saúde pública muito grande. No Uruguai, os transsexuais têm metade da expectativa de vida de uma pessoa não transsexual. Então quiseram proteger essa população e votaram uma lei, chamada Lei Trans. O conjunto desta lei e das leis de gênero irritou muitíssimo à população do interior do país, que é uma população mais velha, muito ligada aos valores da família tradicional.
A esquerda pensou que só votando as leis já era suficiente para produzir uma mudança política. Ela esqueceu, seu velho reflexo de toda a história, de toda a vida, que as mudanças políticas não se conquistam apenas através da lei. Devem ser trabalhados, deve haver uma conquista da consciência do outro e isso não foi feito.
Essa parte da população vive as reformas da vida privada, da família, das relações entre os homens e as mulheres, das práticas sexuais como uma agressão autoritária do governo, que lhes impõe. Aí há um aprendizado que a esquerda deve ter. Não se trata de saber se essas medidas são justas ou injustas, mas qual é o caminho mais apropriado para chegar até elas.
Comparando com o caso do Brasil, o setor religioso, evangélico, que é muito menos poderoso que no Brasil, também se subverteu contra a esquerda, quando antes não eram hostis à esquerda. A hostilidade dos evangélicos acontece quando a esquerda penetra no que eles consideram como o espaço da família.
DCM: Você acredita que essa recuperação de votos nas últimas horas no Uruguai é comparável às últimas eleições presidenciais brasileiras, em que a esquerda também recuperou uma parte dos votos mas por outro lado tarde demais?
Seguramente. Mas os dois contextos são muito diferentes: a queda do PT foi estrondosa no impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula, as denúncias de corrupção que havia, um clima muito distinto. E sobretudo a ascensão de Jair Bolsonaro como candidato, como futuro presidente. Essas coisas não aconteceram no Uruguai.
O Frente Amplio conseguiu ser a primeira força política. Teve 40% dos votos no primeiro turno. E não há a ameaça de um candidato presidencial do estilo de Bolsonaro. O que de fato é provavelmente parecido foi a recuperação tardia, a mobilização tardia e acima de tudo o despertar frente ao medo que representa Jair Bolsonaro no caso do Brasil, chegando a ser presidente e Manini Rios que, no caso do Uruguai, conseguiu se eleger senador e ter 10% das cadeiras no parlamento e, consequentemente, entrar no governo. A coalizão de direita que venceu o Frente Amplio não tem outra alternativa senão a de incluir Manini Rios no seu espaço político.
A esquerda perdeu votos principalmente no interior do Uruguai. E essa divisão eleitoral entre Montevidéu e seu entorno, as cidades grandes digamos, e o interior, de povoados, rural, é um clássico problema da esquerda.
Quem havia quebrado essa fronteira tinha sido o trabalho político realizado por Mujica. Essa eleição volta àquele problema clássico da esquerda uruguaia, que não sabe falar com esse povo que está mais ligado à vida rural e uma série de valores.
DCM: O comunicado publicado pelos militares no Uruguai me faz lembrar de uma publicação do general Villas Boas no Brasil, que convocou as Forças Armadas a intervir caso o Supremo Tribunal Federal concedesse um habeas corpus a Lula e o libertasse da prisão. Que papel os militares estão assumindo na América do Sul atualmente?
Não sei se o caso do Uruguai é representativo e não creio que os militares estejam tomando uma posição uniforme na América do Sul. Por exemplo, se olharmos para a Argentina, onde os militares tradicionalmente e há muito tempo têm um papel político muito importante, nesses últimos anos, entre o kirchnerismo e o macrismo e a volta do peronismo numa aliança com o kirchnerismo, tudo isso não pareceu de maneira alguma provocar uma mobilização nem das Forças Armadas, nem das forças policiais, nem que se manifestassem publicamente num sentido ou em outro.
No caso da Bolívia, as coisas são mais antigas e complexas porque parecia que toda a relação que o governo Evo Morales havia construído com as forças armadas e a segurança se rompeu num determinado momento e um setor das forças armadas, que estava dividida, que apoiava o governo decidiu abandoná-lo e o setor da ultradireita, mais fascista, toma o controle.
No Uruguai, não aconteceu nenhuma dessas duas coisas, mas de fato apareceu um descolamento político de um militar, que consegue mobilizar certos setores da oficialidade e do exército, da instituição militar que não representa uma ameaça nem para a esquerda nem para a democracia.
Não podemos esquecer que há alguns meses o presidente Tabaré Vázquez destituiu toda a cúpula das forças armadas em apenas um ato, incluindo o comandante do exército e o ministro da Defesa porque havia um engano, um documento falso ao presidente da república e ele decide destituir toda a cúpula militar de uma só vez. Isso é inédito na história do Uruguai. E se as forças armadas estivessem constituídas como um ator importante, teria havido uma crise naquele momento. Não aconteceu absolutamente nada.
A única coisa que aconteceu foi que esse general resolveu fundar um partido político. Acontece de tudo no melhor dos mundos porque esse é exatamente o transcurso normal da vida democrática.
Não são homens fardados que ganharam. São homens com microfones que conquistaram votos. Que sejam de extrema direita não quer dizer que não estejam respeitando as regras do jogo.
DCM: O Uruguai tem os mais baixos índices de desigualdade social e pobreza na América Latina. Por que Lacalle ganhou e não a esquerda?
Por várias razões. Em primeiro lugar porque para os cidadãos que estão mal, não lhes adianta nada se compararem com os que estão do lado se os que estão do lado estão pior.
Nesse Uruguai tão exemplar do ponto de vista de alguém de fora, esse Uruguai que fez a indigência desaparecer, que reduziu a pobreza a índices que fariam outros países da América Latina sonharem, que produziu progressos, disso ninguém tem dúvidas.
Apareceu uma série de problemas sociais nos últimos três anos, que afetam uma parte importante da população. Esses problemas são: o crescimento do desemprego, porque a crise do Brasil e da Argentina de fato não provocou a falência do Uruguai no passado, mas provocou a perda de 50 mil postos de trabalho, uma desaceleração do crescimento de renda da classe média e um estancamento do processo de redução da pobreza, o que para as pessoas que estavam em situação de pobreza significa um pioramento de suas condições de vida.
Por outro lado, tem um fator decisivo na campanha: apareceu pela primeira vez no Uruguai a violência civil, provocada pelo ingresso do narcotráfico e o recrudescimento de certas formas de delinquência.
Claro que uma pessoa lendo esta entrevista no Brasil, por exemplo, deve pensar: “os uruguaios estão loucos”, porque no Uruguai há um morto por dia a bala. E a maior parte desses mortos não têm nada a ver com uma polícia mafiosa, por exemplo. Mas isto, para os uruguaios, é insuportável. E isto ocorreu durante o período frenteamplista. Então há aí um jogo de temporalidades.
A maneira como o governo do Frente Amplio raciocinou foi: “olhem como estava o Uruguai quando chegamos e vejam como está agora”. Está sem dúvida muito melhor. Mas a experiência das pessoas é: “estávamos melhor três anos atrás e estamos indo ladeira abaixo, cada vez pior, tem que parar isso de alguma maneira”. Isso não provocou uma fuga massiva de votos em direção à direita, mas provocou um diferencial junto com a irritação de que falamos há pouco.
Não se deve esquecer que cada uma das vezes que o Frente Amplio ganhou as eleições ganhou uma margem relativamente pequena. O Uruguai sempre esteve dividido em dois. Agora houve um corrimento para o outro lado que fez com que a direita liberal voltasse ao governo.
DCM: O desemprego, você cita como uma repercussão da crise do Brasil e da Argentina, mas os outros fatores não?
Um dos grandes acertos do Frente Amplio no uruguai foi em matéria econômica, em diversificar a economia e produzir algumas mudanças que eram grandes problemas da economia uruguaia; o comércio exterior do Uruguai depende muito menos do Brasil e da Argentina do que há 15 anos. O comércio com a Ásia é muito mais intenso.
O turismo argentino representa uma quantidade imensa de divisas para o Uruguai. As exportações para o Brasil seguem sendo muito importantes. Quanto a isso, melhorou, mas ainda não é suficiente para evitar uma crise.
Ou seja, quando Brasil e Argentina entraram em recessão, o Uruguai não entrou em recessão, mas teve um crescimento praticamente nulo, o que provocou o fechamento de postos de trabalho na construção, por exemplo.
Eu pessoalmente penso que o presidente atual (Tabaré) fez as coisas bem, mas não foi suficiente para ganhar as eleições. Há outros fatores que devem ser mencionados.
A esquerda uruguaia nasceu na sua forma atual há muito tempo, nos anos 1970, atravessou a ditadura. O triunfo da esquerda em 2005 é o triunfo de uma geração que vinha lutando há muito tempo. E essa geração terminou, não faz mais parte da direção da esquerda porque estão muito velhos e muitos vêm morrendo.
A nova geração frenteamplista é uma geração que vai ter que reinventar a esquerda. Vai tentar outros códigos. Uma pessoa que tinha 10 anos em 2005 tem 25 anos agora. Então aí está uma parte importante da população que foi socializada politicamente com a esquerda no poder.
Tudo isso são mudanças importantes que têm a ver com a correlação dos velhos partidos dentro do Frente Amplio , que se recompõem, se reacomodam, por exemplo o Partido Socialista, do presidente Tabaré Vázquez, foi mal eleitoralmente, ficou isolado como uma pequena minoria. Isso é um fato inédito.
Contrariamente, o setor dos tupamaros, de Pepe Mujica, foi muito bem, cresceu muito, uma força dominante. Mas para conquistar as classes médias, ilustradas, progressistas, que
também forma parte do Frente Amplio , não é um eleitorado natural, é um eleitorado que vai mais facilmente para um partido de tipo liberal. Há mudanças desse tipo.
DCM: Creio que uma pergunta será inevitável para o público que o lê; não pergunto qual é o “segredo” do Uruguai, mas por que o eleitorado do país teve medo de ver os militares no poder?
Aí tem algo que o Uruguai compartilha com a Argentina. A lembrança do passado ditatorial é muito importante. A população uruguaia não vê com maus olhos que haja um governo liberal. Uma parte está disposta a isso, mas de maneira alguma voltar ao passado.
Foi algo que a esquerda, após a ditadura, fez muito bem; desprender-se de certas coisas que a cidadania uruguaia não estaria disposta a acompanhar. Os tupamaros, por exemplo, sem nunca ter renunciado à luta armada, sem fazer uma declaração o fizeram na prática. E evitaram políticas de tipo revanchista.
Por exemplo, quando o ex-presidente Mujica chegou ao poder, um ex-guerrilheiro, comandante-chefe das Forças Armadas, muitas pessoas de esquerda esperavam que fosse o momento de prender os torturadores, os golpistas, todos os militares que ainda estão em liberdade e não foram julgados, resolver a questão dos desaparecidos. O presidente Mujica não fez isso.
Ele permitiu que a justiça avançasse, mas não deu um impulso político que pudesse soar a “revanche”, para o pensamento de que “agora que estão no poder fazem a mesma coisa que eles faziam”. A esquerda foi muito eficaz nesse sentido, em poder combinar as duas coisas e isso permite um fôlego democrático.
Os setores progressistas de esquerda, mesmo tendo perdido a eleição presidencial, seguem tendo 40% das duas câmaras. E é altamente provável que o Frente Amplio conserve esses dois espaços de governo que reúnem a metade da população do país. Enfim.
O jogo político não se dá apenas em uma eleição e isso ajuda a manter essa ultradireita de alguma maneira isolada, marginal, e isso é parte da batalha política. Se pensarmos no MAS (Movimiento al Socialismo, partido boliviano do ex-presidente Evo Morales), seu grande erro foi não ter percebido que a consequência de uma série de passos que estava dando despertava o que há de pior na sociedade boliviana. As forças de esquerda não podem funcionar exclusivamente pensando em conquistar o governo ou ganhar as eleições.
DCM: Até agora o Uruguai funcionava como um contraponto aos interesses dos Estados Unidos na América do Sul. Qual deve ser a política externa com Lacalle no poder?
Não se sabe muito bem. O próprio Frente Amplio tinha em si suas próprias contradições. A situação geopolítica do Uruguai é muito complicada porque é um pequeno país, uma pequena população, uma pequena economia, é muito difícil para o Uruguai encontrar uma decisão de contrapeso às decisões que são tomadas em Buenos Aires ou em Brasília. Isso levou uma parte a buscar uma aliança com os Estados Unidos, independentemente do governo. E isso também foi uma tentação da esquerda em uma parte do Frente Amplio mais próxima de Tabaré Vázquez do que de José Mujica, que era mais latinoamericanista.
Agora, deve ir mais em busca de apoio dos Estados Unidos, mas dependerá muito do que Brasil e Argentina decidam em função de política monetária, do Mercosul. A competição entre Brasil e Argentina é tão grande que o espaço que o Uruguai tem para estabelecer negociações entre esses dois gigantes é muito pequeno.
Tenta o Uruguai buscar alianças comerciais e geopolíticas por fora de quem são seus dois principais parceiros. Uma coisa são os povos latino-americanos. O povo uruguaio se sente muito solidário ao povo brasileiro e ao povo argentino. E outra coisa é o que acontece no nível dos estados, dos interesses financeiros, sociais, comerciais.
DCM: Lacalle disse que terá as melhores relações possíveis com Fernandez e Bolsonaro. Parece-lhe concebível?
Não… Não me parece que um presidente possa dizer outra coisa. Recordo o que disse o presidente Mujica: “os países estão onde estão, não podem mudar de lugar”. Seria ridículo que um presidente de um país de três milhões de habitantes diga que vai combater o governo do seu principal vizinho, de 200 milhões de habitantes.
Isso não tem nenhuma relação com o que o governo irá fazer: qual será a política de câmbio do Uruguai? A relação do peso uruguaio com o dólar… Supõe-se que, contrariamente à esquerda, o governo do presidente Lacalle vai permitir um aumento do dólar para favorecer o setor exportador. Esse tipo de decisões são na realidade o que está em jogo.
A Argentina está numa profunda crise. As alianças econômicas que podiam-se imaginar nos tempos de Lula e de Nestor ou Cristina Kirchner, imaginar alianças de investimentos, acordos estratégicos, esses anos em que os governos tinham pensamos muito próximos, na verdade as políticas de investimento foram quase inexistentes.
Eram declarações, mas não foram seguidas de fatos econômicos. Por exemplo, Mujica buscou durante muitos anos se associar à Argentina para construir um porto de gaseificação, porque o Uruguai não tem gás.
A economia do Uruguai não permite fazer isso sozinho. Precisa de um aliado. Com a Argentina, isso fracassou. Com o Brasil, aconteceu algo similar. O Uruguai quis contar com a ajuda do Brasil para construir uma linha ferroviária que servisse também à economia do Rio Grande do Sul, culminando num porto ao leste. O tamanho da economia do Uruguai
não o permite de fazê-lo sozinho se não beneficiar também a economia do sul do Brasil. E os governos de esquerda do Brasil nunca concretizaram isso porque não era sua prioridade de investimento.
Frente a esse rechaço de seus dois vizinhos, o Uruguai foi buscar outros parceiros, os chineses… É nesse terreno que se jogam as relações entre os países e não nas declarações “vamos apoiar a esquerda, vamos ser amigos de tal”, isso é secundário.
DCM: Com a vitória da centro-direita no Uruguai, o Mercosul deve acabar como desejava Bolsonaro quando a centro-esquerda ganhou na Argentina?
O Mercosul está praticamente morto, não produz nenhum efeito econômico e político nesse momento. Duvido que o Mercosul vai ser liquidado formalmente como estrutura de acordos mas também é pouco provável que avance na conjuntura atual.