PUBLICADO NO CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO
A virada do ano tem sido de terror no tekoha – lugar onde se é – Laranjeira Nhanderu, localizado no município de Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul. Em mais um episódio de violência na ofenahnsiva intermitente sofrida pelas comunidades Guarani Kaiowá do estado, na madrugada desta quarta-feira, dia 1º de janeiro, uma Casa de Reza foi incendiada sendo parcialmente destruída. Entre a noite e a madrugada desta quinta-feira (2), homens não identificados atacaram os indígenas a tiros e invadiram algumas casas esvaziadas pela fuga de seus moradores.
Notícias passaram a circular no final da tarde desta quinta vinculando os ataques aos próprios indígenas. Fontes policiais chegaram a afirmar que uma briga entre os Guarani Kaiowá serviu de combustível ao incêndio e aos ataques posteriores. Lideranças indígenas de Laranjeira Nhanderu, no entanto, não confirmam as informações. Tampouco que o incêndio tenha tido a participação de indígenas evangélicos neopentecostais. Uma outra liderança Guarani Kaiowá, da Aty Guasu, principal organização política do povo, esteve em Laranjeira durante o dia, conversou com os indígenas residentes e rechaça a divulgação da participação de outros indígenas nos ataques.
“Estão dizendo que tem índio Guarani Kaiowá envolvido com a queima da Casa de Reza. É notícia falsa, denúncia errada. Ninguém sabe quem foi que colocou fogo. Vimos aqui foi capanga, que a gente chama de pistoleiro, não indígena. Isso machuca e revolta a gente porque vivemos todo dia o genocídio, a violência, o racismo e sempre procuram um jeito de dizer que isso é culpa da gente mesmo”, diz uma liderança indígena que prefere não se identificar por temer represálias. “A Casa de Reza é um símbolo para o nosso povo, é muito importante para a gente, nossos rezadores, nossa vida espiritual e aqui na terra. Não é a primeira vez que incendeiam uma Casa de Reza nossa”, explica a liderança da Aty Guasu.
A indígena moradora de Laranjeira Nhanderu explica que a casa onde vive fica nos arredores da Casa de Reza. Ao lado do esposo, pouco antes do ataque, dormia após a virada do ano. Um barulho vindo de fora colocou-os de pé. O indígena a deixou na moradia saiu para o quintal a fim de averiguar o que se passava quando avistou um homem, não indígena, caminhando no sentido da Casa de Reza. Perguntou três vezes se o sujeito estava perdido. Parado, na escuridão, o homem apenas respondeu: vai embora. O sujeito carregava o que parecia ser ao indígena uma arma. De volta ao interior da casa, pegou a esposa pela mão e juntos correram para o milharal. De lá observaram a movimentação e o início do fogo. Pouco depois os homens fugiram e teve início a luta contra as chamas, que sob a ação da comunidade consumiu apenas um pedaço da construção antes de apagar.
Juntando as informações, os indígenas acreditam que no quebra-cabeça do incêndio e do ataque há a participação de dois a quatro homens. Mesmo acreditando na hipótese, não sabem dizer se as ações foram coordenadas e praticadas pelos mesmos indivíduos. Como as investidas ocorreram pela madrugada e à noite, a identificação dos envolvidos se tornou impossível. “E a gente tem que se proteger. Não dá pra ficar esperando pra ver se dá pra saber quem é. Hoje estamos preparados porque a gente acredita que vem de novo. Querem acabar com a gente, matar. Entram nas casas, vasculham estrada. Estamos de guarda aqui e ver o que fazer se aparecer de novo”, conta a indígena.
No caso do ataque a tiros, a Guarani Kaiowá explica que os homens andaram entre os barracos e gritavam para que eles deixassem o local ou então “todos vão morrer”. Gritaram também xingamentos racistas enquanto atiravam. Aos Guarani Kaiowá restou a busca por formas de proteção. “Nossa preocupação maior é com as crianças e os idosos. Estamos cansados de viver nessa situação. Queremos que as autoridades tomem alguma decisão a nosso favor. Vamos fazer documento na Casa de Reza e denunciar o que o Guarani Kaiowá tem passado aqui em Laranjeira Nhanderu”, afirma.
Ocupação de Laranjeira Nhanderu
Os ataques ocorreram em uma área retomada pelos indígenas no mês de outubro de 2018, na sede da Fazenda Santo Antônio da Nova Esperança, que já está sob a posse dos Guarani Kaiowá desde 2007, quando diversas disputas de terra no local e na Justiça tiveram início. “Cerca de 80 indígenas vivem em barracos sem acesso à energia elétrica ou à água encanada. Sobrevivem de trabalhos precários e da cesta básica distribuída pela Funai (Fundação Nacional do Índio (Funai)”, conforme nota do Ministério Público Federal (MPF) sobre a última vitória no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), que suspendeu em abril de 2019 a decisão liminar da 2ª Vara Federal de Dourados que havia determinado a reintegração de posse da fazenda.
A história, no entanto, é de idas e vindas dos Guarani Kaiowá numa dança de insistência e resiliência do povo em busca de uma vida em Laranjeira Nhanderu. De acordo com uma linha do tempo sistematizada pelo MPF, em setembro de 2009 os indígenas foram expulsos da área, passando a ocupar as margens da BR-163. Ali permaneceram em condição insalubre, até nova ocupação da área, em maio de 2011. O retorno foi antecipado porque o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) requereu também a reintegração de posse em relação à faixa de domínio da estrada. Os indígenas então voltaram para a área de mata da fazenda.
Passaram a enfrentar um novo problema: o proprietário da fazenda vizinha ao local trancou os dois acessos ao acampamento Guarani Kaiowá. Bloqueados, os indígenas estavam impedidos de acessar a prestação de serviços essenciais como atendimento médico, distribuição de remédios e alimentos, apoio policial e até mesmo o transporte escolar. Até os indigenistas da Funai eram impedidos de entrar. Em 2013, uma decisão judicial assegurou a entrada de órgãos assistenciais.
“É um conflito de terra. Não querem os Guarani Kaiowá de volta aos seus territórios. Agora começam a usar possíveis divergências internas ou qualquer outro motivo para dizer que não é por conta da terra que as comunidades são atacadas. Tem um histórico, isso é no Mato Grosso do Sul todo. Precisa ter responsabilidade com a vida da gente e não pode sair por aí dizendo isso ou aquilo. Autoridade não vai na comunidade, não investiga e planta informação errada”, explica a liderança da Aty Guasu.