Esperança de transformações foram frustradas por alianças conservadoras, segundo Marcos Nobre.
A entrevista abaixo foi publicada, originalmente, no jornal Valor Econômico.
Entusiasmado com os protestos que eclodiram nas últimas semanas e tiveram seu auge ontem, o filósofo da Unicamp e do Cebrap Marcos Nobre afirma que as manifestações populares são a prova que esperava desde 2009 para sustentar seu argumento de que alguma resposta haveria de ter à geleia geral do sistema político que ele denomina de pemedebismo.
Para Nobre, os protestos representam uma recusa de a sociedade aceitar a blindagem do sistema político que represa o avanço de forças de transformação cuja origem vem desde meados da década de 1980, com a Constituinte.
Em sua opinião, o PT, que era o depositário da energia dessas transformações, passou por um processo de tecnocratização, afastando-se e frustrando as expectativas de movimentos históricos.
O marco teria ocorrido em 2009 quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiu em defesa do então presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), no escândalo dos atos secretos, afirmando não se tratar de um cidadão comum.
Lula teria convencido parte da sociedade de que um pacto com o atraso era necessário e que este era o ritmo máximo de diminuição da desigualdade e de aprofundamento da democracia que se poderia atingir.
Qual é o significado destas manifestações?
Esse movimento é justamente um movimento antipemedebista, contra esse fechamento em si mesmo do sistema, essa blindagem contra as energias vitais, democráticas da sociedade. E é um sinal de que a democracia brasileira está viva, está atuante. E que esse pretenso consenso de como se deve caminhar, sobre o ritmo e a velocidade da diminuição da desigualdade e do aprofundamento da democracia, não é um consenso.
Toda a abertura inicial do governo Lula à participação, à deliberação, pouco a pouco foi se fechando numa nova maneira tecnocrática de gestão. Isso tem muito a ver com a ida do [marqueteiro] João Santana, que deu uma organização publicitária ao governo, e a própria escolha da Dilma como candidata.
Quais são as consequências?
Das duas uma: ou o sistema político se abre e se reforma radicalmente ou vamos ter cada vez mais a oposição de um sistema político que roda em falso, fechado nele mesmo, e uma sociedade que vai protestar contra essa democracia de baixo teor democrático.
Mas o sistema brasileiro, com modelo de votação proporcional e nominal, não é plural, fragmentado e bem menos fechado que outros que tem lógica bipartidária e sistema de lista fechada?
O brasileiro é tão fechado quanto. Tem outro modo de operar. Temos o presidencialismo de coalizão – que é outra expressão que acho lamentável, porque o que acontece no Brasil é um condomínio pemedebista, muito diferente de uma coalizão de partidos. Essa cultura política do pemedebismo é muito mais impenetrável ainda que a de sistemas como Espanha ou França.
Esse sistema é impermeável porque ele é dotado de uma cultura política, de um modo de funcionamento feito para excluir, para travar mudanças profundas. Ele é construído dessa maneira. Por isso, essas forças de contestação são forçadas a se voltar contra o próprio sistema político. Não tem alternativa dentro do sistema tal como ele funciona hoje. Pensando em um partido determinado, por onde esse protesto poderia entrar?
O PSOL surgiu como opção à esquerda do PT. Mas para conquistar a primeira prefeitura de capital (Macapá) teve apoio da direita. No Brasil, ocorreria o oposto do previsto pelo cientista político Giovanni Sartori, em vez da contaminação dos partidos grandes pela ideologia dos pequenos, estes é que imitam o pragmatismo dos grandes?
O caso de Macapá é exatamente o exemplo que eu ia dar. Acontece que Sartori está escrevendo no pós-Maio de 1968. Isso faz uma diferença bárbara. Porque Maio de 68 resultou numa mudança radical de cultura política nas democracias avançadas. O Estado de bem-estar social, na formulação que estava na época, transformava as pessoas em clientes, em objetos de política pública. E o trade-off era mais ou menos o seguinte: a sua pensão e os seus remédios estão ali direitinho, você vai receber em dia, ao mesmo tempo você é tornado um cidadão passivo.
Então, todos os movimentos estavam querendo dizer: eu não sou um cliente, eu sou cidadão. E um cidadão participa da democracia na rua. Sem isso, não teríamos essa visão de democracia que temos hoje, que não se restringe ao regime político. Democracia não é regime político. É uma forma de vida, é cultura política, não é um regime político.
Sartori escreve quando já existe essa mudança, os movimentos sociais já estão todos ali. É diferente da nossa situação. Experimentamos blindagem neoliberal, que veio até a crise de 2008, que é a blindagem que os movimentos da Europa querem romper. O neoliberalismo no Brasil tem elemento diferente, que é o pemedebismo.
O que marca o pemedebismo?
Não tem um sistema organizado em oposição e situação. É um sistema em que todo mundo está dentro do governo. E que oposição e situação se organizam dentro do próprio governo. Ninguém está fora dele.
A oposição formal, ou virtual, a única coisa que faz é esperar a economia dar errado para ver se o poder cai no colo dela. E não aposta justamente nisso em que apostam os movimentos. O [governador de São Paulo Geraldo] Alckmin está tão atônito quanto o [prefeito Fernando] Haddad. Porque para eles a economia determina tudo.
Acontece que a economia não determina tudo. Em Maio 1968, se estava no auge, no pico de distribuição de renda, pró-salários. Estamos num momento em que a economia não está resplandecendo, mas o desemprego está baixo, a renda continua aumentando um pouco, e é quando explodem as coisas.
Não é um protesto sobre os 20 centavos?
Também. Mas eles recorreram à Constituição para fundamentar a reivindicação do Movimento Passe Livre. Basta uma pessoa andar em qualquer transporte público, em qualquer cidade brasileira, para ficar horrorizado. O protesto é sobre isso. Mas não é por acaso que ele canalizou todas as forças de insatisfação.
E por que a área de transporte levou a essa mobilização?
A insatisfação pode começar num bandejão de uma universidade e virar Maio de 1968. O estopim é imprevisível. É a vitalidade da democracia. Representa o susto da ordem.
Em que medida os protestos refletem a contradição de camadas da população que ganharam poder de consumo mas que continuam a receber serviços públicos de baixa qualidade?
É um fator, desde que não seja o fator. Porque de novo aí as pessoas vão tentar explicar tudo pela economia. Diminuir a desigualdade é avançar a democracia, só que você não pode fazer uma troca de menos desigualdade, mas eu aceito ficar com o mesmo grau de liberdade. As duas coisas têm que vir juntas.
A causa não seria a perda do controle das ruas pelo PT?
Primeiro, sou contra essa ideia de cooptação simplesmente. Houve um convencimento durante o governo Lula da parte organizada da sociedade – sindicatos, ONGs, associações de lutas por direitos. Nenhum partido controla um movimento social autêntico. Outra metáfora que eu detesto é a da fadiga de material. Estamos falando de política e não de construção civil. Não tem nada a ver com o governo estar há muito tempo no poder. Trata-se da maneira pela qual se mantém no poder. É o processo de tecnocratização.
É um movimento de classe média?
Não. Esse é outro dos muitos mitos que envolvem os protestos. É um mito que eles pertencem à classe média alta, às redes sociais ou que expressariam um fenômeno natural de inconformismo da juventude.
Que relação há entre os protestos no Brasil e no exterior?
Vamos distinguir o que é Primavera Árabe do que é Turquia e Brasil. Não se pode confundir protestos em geral numa democracia e protestos em ditaduras.