PUBLICADO NO O((ECO))
POR FERNANDA WENZEL
No dia 27 de setembro de 2019 o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) apresentou o projeto de um novo Código Ambiental para o Rio Grande do Sul. 75 dias depois, o projeto que altera cerca de 500 pontos da legislação era aprovado pela Assembleia Legislativa, sem passar sequer pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da casa. Para se ter uma ideia, o código anterior havia sido discutido por nove anos antes de ser aprovado, em 2000.
Mas se dependesse apenas do governo, a tramitação seria ainda mais rápida: em 30 dias. Só não foi assim porque a Justiça atendeu a um pedido de um grupo de deputados e proibiu que a votação ocorresse em regime de urgência. Na decisão, o desembargador Francisco Moesch argumentou que é proibido enviar projetos sobre códigos em regime de urgência, e que uma matéria desta complexidade necessitava de mais tempo de discussão com a sociedade.
Mas a pressa era tanta que o governo deu outro jeito. Recorreu a um artigo da Constituição Estadual que permite a votação através de um acordo de líderes, tendo como única condição que o projeto passe pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia. O novo código foi aprovado por 37 votos a 11 no dia 11 de dezembro. A população teve uma única oportunidade para debater o projeto, em uma audiência pública marcada por bate-bocas e protestos.
Para o advogado Marcelo Pretto Mosmann, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e que atua em ações na área ambiental, a manobra do governo cria insegurança jurídica em torno do novo Código: “O Estado não usou o regime de urgência, mas igual não permitiu a participação da sociedade. Houve apenas uma audiência pública para discutir um projeto que altera 500 itens de uma legislação com impacto em todo estado. Até para mudar o plano diretor de um município com 10 mil habitantes é preciso mais participação que isso”.
Mas a maior insegurança jurídica está relacionada à aplicação das novas normas. Ao analisar um caso concreto – um processo de licenciamento, por exemplo – qualquer juiz pode questionar a constitucionalidade da nova legislação: “Qualquer empreendimento que estiver se instalando com base no novo código pode vir a ser questionado judicialmente”, diz o advogado. Ele cita o exemplo do novo Código Florestal, que depois de seis anos em vigor teve artigos vetados pelo Supremo Tribunal Federal.
A insegurança jurídica não preocupa apenas entidades ambientalistas, mas o próprio setor produtivo. Luis Fernando Marasca Fucks, presidente da Associação dos Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS), reclama que vários artigos exigem regulamentação posterior. Ao longo do texto, há pelo menos 17 itens cuja aplicação ficará a cargo de alguma regulamentação ou lei que ainda não existe. “É um código completamente aberto, quando deveria ter todas as diretrizes já definidas”, afirma Fucks. A entidade também queria um tempo de transição para os produtores se adequarem às novas normas, o que não aconteceu. O Código foi sancionado em 9 de janeiro e já está em vigor.
Uma análise da equipe jurídica da Aprosoja-RS apontou cerca de 150 pontos com erros ou imprecisões. No artigo que trata de áreas especiais, por exemplo, estas são descritas como “áreas com atributos especiais de valor ambiental e cultural, protegidas por instrumentos legais ou não, nas quais o Estado poderá estabelecer normas específicas de utilização, para garantir a sua conservação”. O texto não explica o que são “atributos especiais” ou o que seriam instrumentos “não-legais”. Também não esclarece se estado vai realmente estabelecer normas de utilização, já que a lei diz apenas que ele “poderá” criá-las.
Outro exemplo da insegurança jurídica está nos artigos que dispõem sobre os conselhos das Unidades de Conservação (UCs). O artigo 41 diz que será permitido “conselho deliberativo apenas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Extrativista”. Mais adiante, o artigo 225 afirma: “Os conselhos das Unidades de Conservação em desacordo com o previsto no art. 41 deste Código ficam automaticamente adequados às disposições do referido artigo”. O texto gerou críticas da equipe jurídica da Aprosoja-RS, que entendeu que os conselhos ficam automaticamente legalizados. Curiosamente, a Associação dos Servidores da Fepam (órgão responsável pelo licenciamento ambiental no estado) também ficou contrariada, mas pelo motivo oposto. A associação entendeu que a lei extingue os conselhos deliberativos. E agora, quem está certo? ((o)) fez esta pergunta à Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), mas não obteve resposta. A reportagem também solicitou entrevista com o secretário Artur Lemos Júnior, sem sucesso.
Segundo informações divulgadas pelo governo do estado, com o novo código espera-se reduzir de 160 para 90 dias o tempo médio de emissão de um alvará. Ainda de acordo o Palácio Piratini, as regulamentações previstas na legislação serão feitas nos próximos meses.
Autolicenciamento é o ponto mais polêmico
Aquilo que o governo chama de modernização do código ambiental era uma promessa de campanha de Eduardo Leite. Segundo o tucano, a lei antiga dificultava a instalação de empreendimentos e atravancava o desenvolvimento do estado. Neste contexto, o ponto mais caro ao governo – e incluído com sucesso na nova lei – é a criação do autolicenciamento. A Licença Ambiental por Compromisso (LAC) é concedida em até 48 horas pelo sistema online do órgão de licenciamento ambiental – a Fepam – sem análise prévia de nenhum técnico.
O empreendedor precisa apenas preencher uma declaração em que assegura estar atendendo a todos os requisitos ambientais, e o Estado acredita na boa-fé do empresário. A definição de quais empreendimentos estarão sujeitos ao LAC será definida posteriormente pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), e por enquanto a única restrição é “nas hipóteses que envolvam a conversão de áreas de remanescentes de ambientes naturais, a intervenção em Áreas de Preservação Permanente e atividades sujeitas a EIA/RIMA”.
“Sugerimos que as atividades sujeitas à LAC ficassem restritas para atividades de baixo impacto, de pequeno potencial poluidor, mas essa nossa proposta não foi acolhida”, explica o promotor de justiça Daniel Martini, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente. Ele conta que o projeto do novo Código foi apresentado ao Ministério Público Estadual (MPE) no mesmo dia em que foi protocolado à Assembleia. Após analisar o texto, promotores e procuradores encaminharam 112 sugestões de alterações ao governo do estado.
Martini não respondeu quantas das sugestões foram acatadas, mas por enquanto o MPE não pensa em entrar com uma ação para suspender a legislação. A estratégia da instituição é continuar negociando com o governo na fase de regulamentação do Código. “O Secretário do Meio Ambiente prometeu que vai considerar as sugestões do Ministério Público nesta próxima etapa”, afirma o promotor.
Assim como o MPE, a OAB-RS também não pretende ingressar na Justiça contra o novo Código. Mas a presidente da Comissão de Direito Ambiental da entidade, Marília Longo, tem várias críticas à nova legislação, a começar pela maneira como foi aprovada. Ela rebate a justificativa oficial do governo, de que o texto já vinha sendo debatido pela sociedade há mais tempo. “Houve um período em que se discutiu na Assembleia Legislativa sugestões de alterações à lei de 2000, mas nunca se discutiu o projeto de um novo Código Ambiental. O projeto que foi apresentado jamais havia sido discutido”, afirma Longo.
Novo Código Ambiental pode facilitar instalação de mineradoras
Até mesmo os técnicos da Fepam foram pegos de surpresa com o novo Código. Segundo o presidente da Associação dos Servidores da entidade (Asfepam), Nilo Sérgio Fernandes Barbosa, em nenhum momento eles foram chamados pelo governo a colaborar com o projeto. Mesmo assim, os servidores emitiram uma nota apontando uma série de erros técnicos no texto e o desmonte da política ambiental do Rio Grande do Sul.
Entre os retrocessos trazidos pela legislação, Barbosa destaca uma mudança que, na sua avaliação, facilita a instalação de empresas de mineração. Pelo Código anterior, um projeto só conseguiria a Licença de Instalação (que autoriza o início da implantação do empreendimento) após o reassentamento dos moradores das áreas afetadas. Agora, o reassentamento só passa a ser exigido para obtenção da Licença de Operação, que autoriza o empreendimento a começar a funcionar. Barbosa dá o exemplo de como isso iria funcionar no caso da Mina Guaíba, que está em fase de licenciamento e prevê a construção da maior mina de carvão a céu aberto do Brasil, a 16 quilômetros de Porto Alegre. “Isso quer dizer que a empresa poderá fazer toda a instalação das cavas, dos prédios, das garagens, das usinas de beneficiamento, antes mesmo de tirar as pessoas do entorno”, diz Barbosa.
O Presidente da Asfepam cita outra brecha do Código Ambiental que pode abrir portas para a mineração, desta vez em áreas costeiras. Ao contrário da lei anterior, que definia as “dunas frontais, nas de margem de lagoas e nas parcial ou totalmente vegetada” como áreas de preservação permanente, a lei atual diz apenas que as “dunas frontais do Oceano Atlântico” precisam ser protegidas. Segundo Barbosa, isso abre espaço para a exploração das dunas internas, comuns na região sul do Estado. É de uma região de dunas, entre o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, que a RGM (Rio Grande Mineração SA) quer extrair minerais pesados. A empresa já obteve Licença Prévia, neste caso do órgão de licenciamento federal, o Ibama. Como ((o))eco já mostrou, existem pelo menos quatro grandes projetos de mineração tentando se instalar no Rio Grande do Sul.
Outro artigo retirado do Código Ambiental determinava que os programas governamentais de âmbito estadual ou municipal passassem por uma avaliação ambiental prévia, inclusive com a realização de audiências públicas em sua área de influência. Para o Promotor Martini, esse é o ponto mais grave da nova lei. Ele dá o exemplo do Polo Carboquímico do Rio Grande do Sul (do qual a Mina Guaíba faria parte) e que foi criado por lei estadual em outubro de 2017 pelo governo de José Ivo Sartori, sem passar por avaliação ambiental. “Quando o estado cria um polo carboquímico é que ele deveria avaliar os impactos prováveis ambientais de estimular e incentivar a atividade de carvão no Rio Grande do Sul”. Para o Presidente da Agapan, Francisco Milanez, este também é o maior retrocesso da nova lei: “Retiraram uma conquista inédita, que era de o planejamento regional ser acompanhado de estudo de impacto”,
Mas as críticas não param por aí. Além de revogar inteiramente o Código Ambiental anterior, a nova legislação incidiu sobre outras leis. Foram revogados, por exemplo, 13 artigos do Código Florestal gaúcho. Entre eles os que proibiam o corte de árvores como figueiras, corticeiras, algarrobo e inhanduvá, além dos itens que regulamentavam o manejo de florestas nativas. “Foram revogados diversos dispositivos importantes do Código Florestal Estadual, sem que isso tenha sido acompanhado de estudos técnicos”, critica Longo.
Dúvidas também cercam a maneira como o Pampa foi abordado na legislação. Como só foi reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente em 2004, o bioma não constava no código anterior. O novo texto afirma que o Bioma Pampa terá suas características e proteção definidas por lei específica, mas ao mesmo tempo autoriza diversos usos do solo da região sem necessidade de autorização do órgão ambiental. Por exemplo, a lei diz que fica dispensada de autorização ambiental “a introdução de espécies herbáceas forrageiras de ciclo de vida anual ou perene na vegetação nativa, desde que não caracterize supressão da vegetação nativa para uso alternativo do solo”. Segundo Nilo Sérgio Fernandes Barbosa, isso quer dizer um produtor rural pode substituir a pecuária pelo cultivo de soja, sem autorização. As duas atividades, no entanto, têm impactos totalmente diferentes sobre o ecossistema.
Do ponto de vista jurídico, o novo código também vulnerabiliza o Pampa. O promotor Martini explica que o fato de o texto mencionar regras de uso do bioma abre espaço para que o restante da regulamentação seja feito por decreto, sem discussão com a sociedade ou com os deputados. “Pode gerar uma brecha para compreender que o Bioma Pampa já está regulamentado no Código Estadual, e que pode-se fazer simplesmente por decreto a partir daqui”, explica Martini.
Assunto | Como era | Como ficou |
Áreas de Preservação Permanentes (APPs)
|
Proibia qualquer tipo de exploração sem autorização prévia de órgãos competentes e sem a realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e de Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). | Afirma que é uma área protegida, mas não menciona as leis que a protegem nem as regras para sua utilização. |
Estímulos e Incentivos | Dizia que o Estado deveiria financiar atividades de pesquisa, educação ambiental, saneamento, etc, e também apoioar universidades e centros de pesquisa. Proibia que bancos e fundos estaduais financiassem empresas e órgãos públicos que descupram a lei ambiental estadual. | O Estado vai fomentar a proteção do meio ambiente “por meio de incentivos e mecanismos econômicos” e poderá criar linhas especiais de crédito para esta finalidade. Institui o Pagamento por Serviços Ambientais, a ser disciplinado por regulamento. Retira a proibição a bancos e fundos estaduais de financiarem quem descupre a lei ambiental estadual. |
Áreas de uso especial | Havia um capítulo dedicado às áreas de uso especial. Além das Unidades de Conservação (UCs), integravam este grupo as áreas adjacentes às UCs, áreas reconhecidas pela UNESCO, bens tombados pelo poder público, estuários, lagunas, banhados e planície costeira, entre outros. | Suprimido |
Licenciamento | Definia as Licenças Prévia, de Instalação e de Operação. | Cria a Licença Ambiental por Compromisso (LAC), autodeclaratória e sem análise prévia dos técnicos ambientais. Também cria prazos mais curtos para o “bom empreendedor”: empresas com certificação, cujos sócios não tenham contra si sanções administrativas ambientais transitadas em julgado nos últimos 5 anos ou que tenham boas práticas de proteção e conservação ambiental certificadas pelo órgão ambiental estadual. |
Patrimônio Ambiental | Obrigava o Estado a manter bancos de germoplasma para preservar amostras significativas do patrimônio genético do estado, em especial das espécies raras e ameaçadas de extinção. | O Estado deve fomentar a manutenção de bancos de germoplasma, mas não é obrigado a mantê-los. |
Bioma Pampa | Não constava, pois o Bioma só foi reconhecido em 2004. | O bioma Pampa terá suas características definidas em regulamento específico. Ao mesmo tempo, aponta cinco atividades no Pampa que ficam dispensadas de autorização pelo órgão ambiental. |
Possibilidade de acordo | Não constava | Abre a possibilidade de a autoridade administrativa “celebrar compromisso com os interessados” “para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença”. |
Projetos governamentais | Os programas governamentais de âmbito estadual ou municipal deveriam passar por avaliação prévia das repercussões ambientais, inclusive com a realização de audiências públicas, em toda sua área de influência. Incluia os planos diretores municipais, planos de bacia hidrográfica e planos de desenvolvimento regional. | Suprimido |
Unidades de Conservação | Emprendimentos localizados a um raio de até 10 km dos limites de Unidades de Conservação (UCs) precisavam de autorização da entidade gestora da UC. | O limite passa a ser de 3 km no caso das UCs sem zona de amortecimento definidas pelo Plano de Manejo. |
Poluição do ar | O estado deve monitorar, fiscalizar e regrar os níveis de poluentes na atmosfera, além de elaborar planos de controle da poluição atmosférica. As empresas que estiverem interferindo no bem-estar da população pela geração de poluentes atmosféricos terão que adotar medidas de controle. | O capítulo que trata da poluição do ar foi reduzido de 9 para 4 artigos. Entre os artigos suprimidos, está o que obrigava empresas que estivessem estivessem interferindo no bem-estar da população a adotar medidas de controle. |
Código Florestal | – | Revoga 13 artigos do Código Florestal, entre eles a proibição do corte de figueiras, corticeiras, algarrobo e inhanduvá, além do artigo que regrava o manejo de florestas nativas. |
Áreas costeiras | Classificava as “dunas frontais, nas de margem de lagoas e nas parcial ou totalmente vegetada” como áreas de preservação permanente. | Determina a proteção da zona de “dunas frontais do Oceano Atlântico” e dos “campos de dunas móveis de significativos valor ecológico e paisagístico”. Mas as “dunas frontais” deixam de ser consideradas áreas de preservação permanente. |
Mata Atlântica | Mencionava o tombamento da Mata Atlântica como um instrumento adicional de proteção deste bioma. | O Bioma Mata Atlântica é considerado patrimônio nacional e estadual, mas é retirada a menção ao tombamento. |
Transparência | – | Revoga a Lei no 12.995, que assegurava ao público acesso aos processos administrativos do Sistema Estadual de Informações Ambientais e a diversas outras informações, como resultados de Licenciamento Ambiental e Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental. |