O novo Maracanã parece um shopping center

Atualizado em 24 de junho de 2013 às 15:06

Você olha, olha, olha e não consegue reconhecer o que antes havia ali.

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Este texto foi originalmente publicado no site Forza Palestra

Não é todo dia que a Azzurra se apresenta em solo brasileiro (a última vez tinha sido em 1957). Daí que surge uma oportunidade dessas e…… e você se depara com uma das experiências mais degradantes a que um torcedor de futebol pode ser submetido. Não só pelo reencontro com o que restou do Maracanã, mas essencialmente porque o palco sagrado do futebol mundial foi tomado por criaturas que desconhecem o seu significado.

Sei que às vezes eu pareço crítico demais (venho tentando maneirar), mas fica difícil me conter diante de certas coisas. Uma vez que muito precisa ser dito sobre esse México 1-2 Italia no lugar onde antes ficava o Maracanã, não vou ter a pretensão aqui de escrever um texto com início, meio e fim. Nem estou com paciência para tanto. Vai aí uma coluna com várias notas esparsas:

PELA HONRA
Antes de tudo, preciso deixar claro que assisti ao jogo em pé – e em qualquer lugar que não aquele indicado no meu ingresso (nem procurei saber qual era) – e proferi os xingamentos que bem quis. Melhor: vi o jogo em um espaço que sequer tinha cadeiras e, portanto, não poderia ser marcado. Era meio que uma passagem lá no alto, no último degrau. Até porque seria muito difícil fazer isso em outros cantos do estádio, uma vez que imperava a passividade das pessoas, todas conformadas com aquela violência praticada contra o torcedor e contra o futebol.

“PADRÃO FIFA”
Estamos falando da postura de descaracterizar o que já existe para transformar o estádio em um ambiente asséptico, padronizado (claro!) e livre de qualquer traço de originalidade. É por isso que os estádios todos se parecem, a começar pela arquitetura na divisa com o campo: sem alambrado, sem fosso, sem grade e, o traço mais característico, com uma espécie de muro que se presta a expor a identidade visual da Fifa e do torneio em questão.

RETIRADA DO INGRESSO
Perdi apenas 15 minutos da manhã de sábado para retirar o ingresso no centro do RJ. A questão, no entanto, não diz respeito ao tempo investido, mas ao ato em si. Porque não faz o menor sentido ter de retirar o ingresso em um local se hoje você pode ou carregar o bilhete no seu cartão de crédito (e a Visa é parceira da Fifa) ou receber o dito cujo na sua casa, sem qualquer sacrifício. Ademais, se é para sujeitar o torcedor a retirar o ingresso, que o façam de maneira organizada, com outras opções de lugar e em horários decentes.

RECEBIMENTO
Do lado de fora, quem chegava ao estádio era recebido pelos voluntários com um protocolar e bem treinado “Boa tarde; seja bem-vindo ao Maracanã”. Eu respondi o primeiro, por pura educação, mas ignorei os demais. Era muita civilidade para quem se acostumou a chegar ao Maracanã se sentindo ameaçado a cada esquina, ouvindo xingamentos daqui e dali e, não raro, tendo mesmo de travar contatos não muito amistosos com os donos da casa (rubro-negros em especial).

OS COXINHAS
Um ponto positivo: não havia cavalos nas imediações; em consequência, não havia cheiro de bosta de cavalo, tampouco aquele rastro que costuma se espalhar pelas ruas próximas. De resto, todo o aparato militar se fazia presente ali por perto. Como eu cheguei bem cedo (duas horas antes do jogo), não tive grandes problemas para me aproximar do estádio e depois para entrar.

MARACANÃ, UM AEROPORTO
No que depender da Fifa, a experiência de ir ao estádio vai se assemelhar mais e mais a cada dia ao que enfrentamos nos aeroportos, onde a obsessão por segurança é sacal. Até o ingresso, vejam os senhores, se assemelha a um bilhete de companhia aérea: não só pelo formato, mas por aquele monte de números e códigos ininteligíveis. Aí vem o pedido para que o torcedor chegue cada vez mais cedo ao estádio (quase a rotina que precede um voo internacional) e depois todos são submetidos ao detector de metais e a uma via-sacra para conseguir chegar efetivamente ao “portão de embarque”. No meio do caminho, as marcas parceiras da Fifa têm direito a um estande comercial, para venda ou demonstração de produtos e serviços. A exemplo do que acontece em um aeroporto, os preços são proibitivos.

“PADRÃO FIFA”
De Rossi disse que o Maracanã está muito “europeu”. Sim, é verdade. Não é mais o mesmo estádio de antes; é, isso sim, igual a todos os outros. Perdeu tudo o que o tornava diferente. Você olha, olha, olha… e não consegue reconhecer o que antes existia ali.

ACESSOS
As tradicionais rampas do Bellini e da Uerj continuam lá. Passaram por uma reforma, mas a essência é a mesma. Em paralelo, foram erguidas novas rampas de acesso para facilitar a entrada e saída dos torcedores. De modo geral, os acessos abaixo de cada setor também ficaram melhores.

A NOVA COBERTURA
Fiquei, é evidente, do lado onde ficava a torcida do Vasco. Por ali, como se sabe, nunca entrou sol – porque ele batia exatamente do outro lado, na torcida do Flamengo. Acontece que a tal nova cobertura (de um material que eu não sei precisar), tem frestas na sua parte mais baixa e o sol agora vem por trás. É só uma constatação, ok?

NUMERADA
Não há mais divisão lógica entre os setores. Quando o estádio voltar para nós, os torcedores, não vai ficar tão evidente onde começa e termina a arquibancada. Há, isso sim, números e mais números, com uma ordem que eu nem quis compreender. Mas o que se via, antes e mesmo durante o jogo, eram pessoas reclamando com outras pelo lugar marcado, gente se levantando para desocupar as cadeiras e atrocidades do tipo. “The horror, the horror…” 

O PÚBLICO
É o que existe de pior nessa nova fase do Maracanã. Você olha para todos os lados e não consegue reconhecer o público do futebol. Não é apenas uma questão de condição financeira, mas de como as pessoas veem o futebol. É uma gente que não pertence àquele lugar, e isso fica evidente na conduta durante o jogo, no discurso, nas reações, nos mínimos detalhes. É uma gente que vê o futebol como se fosse uma brincadeira. Há os puramente idiotas – são muitos – mas os que realmente incomodam são aqueles que querem aparecer: fazem comentários imbecis, resolvem puxar gritos idiotas, apelam para todo tipo de cretinice.

QUER ROLA, SEU PUTO?
Entra em campo Balotelli. Babacas querem aparecer: “Balotelli viaaadoo!”. Por quê? Para fazer graça, só para isso. Na sequência, o mesmo babaca se levanta e puxa o grito: “Ola, ola, ola”. Senhores, acreditem: parecia mais “Rola, rola, rola”. Tamanha era a animação do imbecil (que depois conclamava para o restante do público: “Vem, vem, vem”) que eu não me surpreenderia se fosse isso mesmo. Mas, claro, o viado é o Balotelli. Cena deprimente.

OS CLUBISTAS
Camisas de clubes eram maioria no estádio. Do Flamengo, em especial. Mas SCCP e Palmeiras vinham na sequência, em grande número, mais até que a dos outros clubes cariocas. De tempos em tempos, ouviam-se manifestações clubísticas, do rubro-negro carioca em especial. Houve momentos em que foram entoados alguns cantos tradicionais, logo sufocados pelos rivais. No entanto, o “Mengo” se confundia com o “Mexico” dos hermanos lá de cima. Os gritos em favor da Italia eram mais nítidos.

PROMISCUIDADE
Não havia divisão de torcidas, e então não se tinha um cenário promíscuo, com camisas de clubes rivais lado a lado e uma infinidade de uniformes de clubes do exterior e de selecionados os mais diversos.

ORGULHO
Até que surge algum otário para puxar o indefectível “Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. Pronto, a derrota está consumada. Nada pode ser tão grotesco.

SEM FOTOS
Não há fotos, é evidente. Não fiz nenhuma. Seria muito mórbido.

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Por ocasião desse meu texto aqui, tudo o que eu sabia sobre o “novo” Maracanã se devia ao relato de amigos e às imagens. Agora que vi tudo com meus próprios olhos, preciso concluir assim:

O Maracanã vai receber mais dois jogos da Copa das Confederações e depois outros seis da Copa do Mundo (procede a informação?). Durante o próximo ano, portanto, ele será entregue a esta entidade nefasta que é a Fifa e a este público de auditório que o tomou de assalto. Não adianta muito lutar contra isso, ao menos não agora. Ao final disso tudo, no entanto, o que restou do Maracanã será devolvido a quem de direito, ao torcedor de futebol, e então é questão de tempo para que ele seja reconstruído (ao menos sob o ponto de vista da moral e dos costumes a ele pertencentes). O primeiro Vasco x Flamengo haverá de restabelecer a ordem vigente, das torcidas entrando cada qual pela sua rampa e ficando cada qual de seu lado, das faixas sendo penduradas, dos torcedores em pé e onde bem entenderem e assim por diante.