Publicado originalmente na Revista Tatame
POR MATEUS MACHADO
Luís Carlos Valois, de 52 anos, é juiz de Direito, Doutor pela USP, pós-Doutorado na Alemanha e membro da AJD (Associação de Juízes pela Democracia) com cinco livros publicados. Seus títulos e conquistas profissionais, porém, não lhe trouxeram arrogância. É um sujeito simples, com uma humildade contagiante. Hoje, Valois atua como juiz da Vara de Execuções Penais em Manaus e é um dos maiores estudiosos sobre o nosso sistema prisional. Em entrevista, Luís Carlos contou detalhes sobre sua trajetória no Jiu-Jitsu e como a arte suave interferiu e ainda interfere em sua conduta dentro e fora dos tribunais.
Nascido no Rio de Janeiro, ainda bem novo, foi levado por seus pais para Manaus, capital do Amazonas, onde viveu boa parte de sua infância e adolescência. Seu primeiro contato com a arte suave foi com o atual prefeito de Manaus e também faixa-preta Arthur Virgílio, amigo de seu pai, que lhe mostrava posições da luta e o incentivava a procurar uma academia.
Assim que acabou o Ensino Médio, Valois voltou ao Rio para estudar Direito, como lembrou a seguir: “Cheguei no Rio para ‘treinar’ Direito e ‘estudar’ Jiu-Jitsu. Tinha uma carta de Arthur Virgílio, me apresentando ao Mestre Carlson Gracie. Quando vi o Carlson pela primeira vez, minha visão foi de um gigante. O cara ficou enorme na minha frente. Naquele instante, senti que havia chegado ao lugar certo, minha nova casa”.
Confira a entrevista completa do Valois:
– Como iniciou no Jiu-Jitsu?
Minha primeira experiência com as artes marciais foi no Judô, com nove anos de idade. Meu pai sempre foi político e logo após a ditadura militar, começou a se candidatar, e um dos seus parceiros na política era o Arthur Virgílio, faixa preta de Jiu-Jitsu e hoje prefeito de Manaus. Os dois sempre faziam campanhas juntos, tinham uma ligação além da política. Meu pai nunca deu atenção ao esporte, mas Arthur Virgílio, sim, era um apaixonado por esportes e principalmente pelo Jiu-Jitsu, e ao saber que eu estava no Judô, começou a me falar sobre Jiu-Jitsu e, principalmente, sobre o Carlson Gracie. Com o tempo e as historias do Virgílio, Carlson se tornou um ídolo para mim. Muitas vezes, Arthur Virgílio me levava para o chão da sala para me ensinar posições e me incentivar a trocar o Judô pelo Jiu-Jitsu. Suas histórias foram me fascinando, queria treinar Jiu-Jitsu, mas naquela época ainda não tinham academias em Manaus. Assim que acabei meu ensino médio, convenci meu pai a me deixar estudar Direito no Rio, mas na verdade, eu queria mesmo era treinar Jiu-Jitsu no Carlson Gracie. Eu vim para o Rio para ‘treinar’ Direito e ‘estudar’ Jiu-Jitsu. Primeira coisa que fiz ao chegar no Rio foi me apresentar ao Carlson Gracie. Lembro que quando subia as escadas da academia, muito nervoso, Carlson vinha descendo. Minha visão foi de um gigante, fiquei impressionado. Carlson pegou a carta, leu e me acolheu como um filho logo no primeiro dia, ainda um faixa branca. Segui o caminho com Carlson até a faixa preta, sou muito grato.
– Quais seus principais títulos no Jiu-Jitsu?
As competições que participei foram no final da década de 80 e inicio da década de 90. Naquela época não existia Campeonato Brasileiro, Mundial, etc. Os torneios mais importantes eram a Copa Company, Copa Cantão, Atlântico Sul, entre outros. Fui campeão em todas as faixas e ganhei os principais torneios que existiam na época. Sempre lutei com os melhores. Lembro de lutas contra Renzo Gracie, Alexandre Paiva e Ralph Gracie… Gostava de competir, sempre treinei muito, não me achava muito habilidoso, mas compensava intensificando meus treinos.
– Ídolo no MMA
Meu ídolo no MMA é o Murilo Bustamante. Aproveito até para me redimir com ele, por estar ausente na sua graduação de Faixa Coral. No mesmo dia fui convocado pelo Senado para falar sobre o projeto do Ministro Moro. Murilo é um dos maiores atletas da historia do Jiu-Jitsu e MMA.
– Já usou o Jiu-Jitsu fora do tatame?
Eu uso todos os dias. Minha autoconfiança, segurança e firmeza para encarar a vida vêm do Jiu-Jitsu. Isso o esporte ensina. Lembro de um almoço que tive com o Carlson, pouco entes de ele falecer. Contei ao Mestre de todos os problemas que eu estava passando, perseguição profissional pelas firmezas das minhas posições, ameaças, etc. Mas ao mesmo tempo, tranquilizei Carlson afirmando que ninguém iria me derrubar. O Mestre bateu em meu ombro e disse ‘ninguém nunca vai lhe derrubar’. É isso que trago do Jiu-Jitsu, a certeza que posso enfrentar os desafios da vida, sejam eles quais forem.
– Quem você gostaria de finalizar?
Essa pergunta é muito complicada (risos). Eu sempre respeitei meus adversários e acho que finalizar deve ser consequência da luta, sem demérito a ninguém, porque entre dois adversários de respeito – e adversários sempre devem se respeitar – a finalização deve ser consequência, e não objetivo.
Respondendo à pergunta, no sentido figurativo, eu quero lutar, agora finalizar, sinceramente, não é meu objetivo. Os adversários fazem parte do contexto e me ajudam a crescer. Finalizar seria antidemocrático.
– Qual a importância das artes marciais na recuperação de detentos?
Primeiramente, eu não gosto de considerar que quem está dentro do presídio precisa se ‘recuperar’. Precisamos respeitar a individualidade de cada um. Às vezes, o crime foi um fato isolado na vida da pessoa e ela está cumprindo a pena, já está pagando pelo que cometeu. Essa ideia de recuperar é uma imposição de valores e moral que não concordo. Penso que se o estado cumprisse a lei dentro do sistema prisional, já estaríamos fazendo muito para que essa pessoa não voltasse a cometer crime. Quando uma pessoa comete um crime e chega a um presídio ilegal, no Brasil, os presídios são ilegais. Eles não cumprem as leis que deveriam, e isso só estimula mais a pessoa para cometer outros crimes. O primeiro passo para ‘recuperar’ uma pessoa é mostrar que o estado cumpre a lei.
Qualquer atividade esportiva que esteja presente no sistema prisional tem que respeitar a dignidade da pessoa que está presa. Jiu-Jitsu não é remédio, não é tratamento, mas mostra para cada um que o pratica o valor da dignidade, ensina o respeito, não só a si próprio, mas aos outros à sua volta. Quando uma pessoa vê sua dignidade respeitada, ela passa a querer respeitar a dignidade do outro.
– Faz sentido ensinar luta a detentos?
Ensinar faz sentido em qualquer área, campo ou aspecto da vida humana, agora o que você vai fazer com o que aprendeu é a questão. Faz sentido você colocar seu filho de 5 anos em uma academia de luta? E se o professor for um mau caráter? Aí é muito perigoso. A criança pode confundir a indisciplina e a rebeldia, que às vezes faz parte do comportamento juvenil, com o maucaratismo do professor. A questão de ensinar artes marciais nos presídios eu já escutei: ‘está ensinando o bandido a agredir’. A luta não ensina nada disso, só quem não entende nada de luta pode achar que a luta vai ensinar pessoas a serem agressivas. É muito pelo contrario, a luta mostra a importância da pessoa não ser agressiva, a manter sempre o respeito ao próximo e o autocontrole.
– Sua tese de doutorada virou um livro, ‘O Direto Penal e a Guerra às Drogas’. Qual o papel do esporte nessa questão?
Na verdade, quando falo “guerra às drogas”, é uma crítica. Você não pode lidar com uma questão humana, que é o consumo de substâncias, com guerra, armamento e militarização. Isso acaba agravando a situação. A droga é uma questão muito complexa e envolve o ser humano, a substância e o social. A proibição que cria a violência que vemos hoje, regulamentando a venda e o consumo, você acaba com o tráfico e gera um controle do estado sobre a questão. A partir disso, fica até mais fácil identificar as pessoas que tem problema com drogas. Isso facilita até o tratamento delas, essas pessoas ficam ocultas pela ilegalidade.
A gente só vai poder mesurar melhor o valor dos esportes na recuperação de quem tem problemas com drogas no dia que descriminalizar. Hoje as pessoas evitam falar de seu problema com drogas, existe preconceito e falta diálogo, mas acredito que o Jiu-Jitsu e outras modalidades de esportes podem e devem fazer parte do tratamento do dependente químico.
– Conte sobre o Instituto Valois de Jiu-Jitsu
O Instituto Valois é uma das maiores contribuições que dei ao Jiu-Jitsu. Logo que passei no concurso para juiz, fui morar em uma cidade do interior do Amazonas chamada Maués, isso em 1993, na época com 25 anos. Queria continuar treinando, corria e malhava, mas não tinha com quem treinar Jiu-Jitsu, então resolvi pôr um tatame na minha casa. Comprei alguns quimonos de criança e comecei a dar aulas aos filhos de alguns amigos que fiz na comarca. Logo apareceram outras crianças. Quem não podia comprar quimono, eu mandava fazer na costureira. Quando percebi, tinha formado uma equipe só de crianças. Como eu era o juiz da cidade, não queria treinar com adultos para não criar vínculos. Isso para o juiz de uma cidade pequena não é bom na isenção que a profissão exige.
As aulas eram no estilo Carlson Gracie, bem rigoroso. Já eram cerca de 20 alunos. O primeiro campeonato que teve em Manaus, coloquei os alunos em um barco e fomos competir. Todos foram campeões, sem exceção, todos mesmo. Inscrevi 12 alunos, todos na faixa branca, dois deles, por falta de adversários na faixa branca, tive que subir para a amarela. Resultado: 12 medalhas de ouro. Fiquei cinco anos nessa comarca e, por sorte, quando saí, quem me substituiu foi o juiz Luiz Alberto Albuquerque, que também era faixa preta, inclusive formado por mim. Para minha, surpresa aqueles alunos, muitos hoje faixas preta, fundaram o Instituto Valois de Jiu-Jitsu. Não fui eu, eles que fundaram e hoje atendem mais de 100 crianças, todas com aulas 100% gratuitas, e agora estão começando a entrar nas tribos para levar o Jiu-Jitsu.