Publicado originalmente no site Brasil de Fato
POR ERICK GIMENES
A morte do serrador Francisco Viana da Conceição, o “Neguinho”, em 31 de janeiro, é o marco de uma guerra em curso na fronteira agropecuária amazônica: desde então, governantes do norte do país pedem a cabeça de fiscais ambientais.
O homem, de 52 anos, foi atingido por um tiro durante uma fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Polícia Militar (PM), em uma zona de mata de Rorainópolis, no sul de Roraima.
A operação ocorreu em área de exploração ilegal de madeira, de acordo com o Ibama. O Instituto diz que, no local, havia sinais claros de desmatamento recente, como marcas de arraste, pátios para estoque e toras de alto valor comercial.
Um dia depois da morte, o governador de Roraima, Antonio Denarium (PSL) se apressou em condenar publicamente os servidores ambientais que participaram da ação, sem que qualquer investigação estivesse em vias de apontar os fatos. Segundo ele, os fiscais já eram motivo de “inúmeras denúncias” de produtores rurais e pescadores da região.
No Congresso Nacional, em Brasília, o senador roraimense Telmário Mota (Pros-RR) ergueu a voz na tribuna. Chamou os servidores de assassinos, pediu imediata identificação dos responsáveis e declarou aberta a caça aos fiscais.
“Foi um assassinato brutal. Quero fazer um apelo ao presidente Jair Bolsonaro. Presidente, o Ibama perdeu a sua verdadeira função. Temos que modificar esses homens armados, despreparados, querem agir como polícia. Estão matando o trabalhador brasileiro”, acusou o congressista.
Inflamados pelas falas dos políticos, o povo se insurgiu. Cercou com fúria o hotel em que estavam os servidores os fez sair corridos da cidade, escoltados por viaturas e um helicóptero da polícia.
A versão do governador e do senador, no entanto, não bate com o relatório da ocorrência – ao qual o Brasil de Fato teve acesso com exclusividade –, escrito pelos policiais militares que estiveram na operação. O relato da PM, subordinada ao próprio Denarium, corrobora o que diz o Ibama – o homem morto era um madeireiro ilegal e reagiu à abordagem.
“Nos identificamos como policiais militares e demos voz de parada aos infratores, todavia os mesmos desobedeceram à ordem legal, correndo para a mata fechada, se abrigando e efetuando disparo de arma de fogo contra os policiais. Momento em que reagimos à injusta agressão, utilizando dos meios disponíveis para salvar nossas vidas”, descrevem os policiais.
Os PMs mencionam, no documento oficial, que os fiscais do Ibama não se envolveram na troca de tiros. Eles só chegaram depois, para prestar socorro ao homem baleado.
“Após os disparados gritamos para os servidores do Ibama pedirem apoio “via rádio”. Quando o apoio chegou adentramos à mata em busca dos infratores. Porém, encontramos apenas um deles, o qual estava alvejado. Providenciamos o socorro imediato ao infrator alvejado (ainda com vida) utilizando a VTR [viatura] do Ibama (…). Temendo uma emboscada, tendo em vista que havia sobrado apenas uma viatura, deixamos o local”, pontuam os policiais no relatório.
Para Elizabeth Uema, secretária executiva da Associação dos Servidores Ambientais Federais (Ascema Nacional), o discurso inverificado de Mota e Denarium faz parte de uma estratégia política nacional, encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), para enfraquecer o Ibama e favorecer setores estratégicos para o governo, como agronegócio.
Ela diz que, diante da situação, o governo de Roraima ameaçou retirar o apoio da Polícia Militar a operações do Ibama contra extração ilegal de madeira. Na prática, se isso ocorrer, as fiscalizações ficam inviabilizadas.
“Eu sei que é um discurso eleitoreiro, mas imagina como soa para a base dele [refere-se ao senador], lá no interior. As pessoas querem matar o Ibama. Está difícil de o pessoal sair em campo. Fora isso, vários governadores na região amazônica estão ameaçando retirar o apoio das polícias militares para ações do Ibama, o que significa inviabilização”, afirma.
A secretária da associação relata que, após a morte, os fiscais têm sofrido ameaças de grupos de madeireiros. “É um medo físico. Depois dessa morte em Roraima, a gente já viu discussões em um grupo de madeireiros dizendo que o jogo estava um a zero, que eles precisavam empatar”.
“Inimigos do progresso”
Desde que assumiu o poder, Jair Bolsonaro faz questão de pintar os servidores públicos ambientais como inimigos do progresso nacional. Em meio a inúmeros ataques verbais, o presidente instituiu uma série de medidas que enfraquecem o poder dos órgãos federais de fiscalização ambiental (Ibama e Instituto Chico Mendes), em uma cruzada contra o que ele chama de “indústria da multa” alimentada por “caráter ideológico”.
“Logo no início do governo, todos os superintendentes do Ibama, com exceção de dois ou três, foram exonerados de uma só vez. A nomeação [para repor] começou a ser feita a conta-gotas, no início do segundo semestre [de 2019]. Ou seja, ficou pelo menos a metade do ano, na maioria dos estados, sem dirigente ou com servidores substitutos, que não tinham lá grandes autonomias. O substituto, às vezes, não vai acionar determinado mecanismo de fiscalização com receio de ser punido ou retaliado”, diz Elizabeth Uema.
Em outro ato de governo, Bolsonaro instituiu o Núcleo de Conciliação Ambiental, inicialmente por decreto, depois por portaria do Ministério do Meio Ambiente. Tratam-se de tribunais estaduais que retiram a independência dos servidores ao julgar se as multas aplicadas por fiscais foram justas.
No fim de janeiro deste ano, mais um indicativo de guerra aos fiscais: ao anunciar a criação do Conselho da Amazônia, comandado pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, e de uma Força Nacional Ambiental, o presidente indicou que deve desidratar o poder dos servidores do Ibama em ações contra o desmatamento em prol do uso policial.
O enfraquecimento também é financeiro: o orçamento aprovado pelo Congresso Nacional ao Ibama, em 2020, sofreu corte de 31%, ficando em R$ 256 milhões. O teto põe em risco a captação do Fundo Amazônia, formado por doações de outros países e essencial para financiar as fiscalizações.
“Já vinha perdendo recursos e, agora, recursos diretos para o Ibama devem ser cortados. Então, deve impactar principalmente na fiscalização, que era um problema. A gente já tinha defasagem de servidores de modo geral, em órgãos ambientais, e agora, com os poucos servidores que a gente tem, a gente não vai ter recurso para as operações em si, que são custosas – deslocamento de muita gente, logística, isso não é barato”, comenta Alexandre Bahia Gontijo, presidente da Associação de Servidores do Ibama, a Asibama.
Em paralelo às ações de Bolsonaro, tramita no Congresso um projeto de lei (PL 3729/04) para abrandar as regras de licenciamento ambiental. A condução dos trabalhos é feita por um grupo coordenado pelo deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) – que já declarou abertamente que nada tem de conhecimento sobre o assunto.
Após ouvirem vários ambientalistas, os deputados chegaram a um consenso, na terceira versão do texto. Contudo, Kataguiri apresentou uma quarta versão, com a possibilidade de se criar um “auto-licenciamento” para empreendimentos rurais, o que desagradou parte dos deputados. A discussão, então, ficou para este primeiro semestre de 2020, ainda sem data definida.
O ato mais recente para estrangular as ações dos órgãos foi a publicação do decreto presidencial 10.234, em 11 de fevereiro, que prevê a extinção das onze Coordenações Regionais (CR) do ICMBio, estruturas que servem para dar apoio técnico e jurídico às 334 Unidades de conservação federais em todo o Brasil.
A Ascema Nacional repudiou, em nota, o decreto. “A Ascema Nacional repudia a falta de clareza e o desrespeito com os servidores lotados nas Coordenações Regionais e UAAF que, sem qualquer planejamento ou aviso prévio, serão extintas. É temerária a ausência da participação do corpo de servidores do ICMBio na elaboração da estrutura regimental do órgão, o que também reforça a suspeita de motivações alheias à missão de proteger o patrimônio natural e promover o desenvolvimento socioambiental no Brasil.”
Fraudes em pareceres
Para além de decretos e portarias, a perseguição a servidores do Ibama também é interna, orgânica. Um servidor que preferiu não se identificar relatou ao Brasil de Fato que chefes de unidades ignoram ou modificam pareceres técnicos para emitir licenciamentos que atendam a interesses econômicos ou pessoais.
“No Ibama, se a equipe dá um parecer contrário à viabilidade de uma hidrelétrica, os chefes só vão conseguir emitir uma licença quando tiverem em mãos um outro parecer, mais forte, que refute as alegações daquele que dizia para o chefe não emitir licença por conta de determinadas razões”, afirma.
“Isso é em uma escala que vai desde decisões mais amplas, até a disputa interna em uma posição pequena, se abre uma trilha ou não para fazer um levantamento florístico, se é feito ou não um relatório. São pequenos passinhos. Esse conflito ocorre a todo momento”, denuncia o servidor.
O funcionário do Ibama conta que foi afastado pela chefia por “rebeldia”, depois de descobrir uma série de fraudes processuais no licenciamento de uma estrada. Segundo ele, sempre que confrontava tecnicamente sobre a viabilidade do processo, a chefia responsável encerrava o processo e abria um novo, para fugir dos questionamentos.
“Eu descobri que tinha cinco processos abertos. Cada questionamento que tinha, eles paravam aquele processo e abriam um outro, para continuar sem aquele documento, aquele questionamento. Um processo tinha um documento do Ibama, outro tinha um abaixo-assinado, outro tinha um questionamento não sei de quem”, narra o servidor.
Ele diz ter sido afastado das funções ao questionar a coordenação e a Corregedoria do Ibama. “Eu fiquei um mês no limbo, sem destino nenhum. Não podia trabalhar. O chefe me deu dois dias para recolher todas as coisas. Tiraram meu acesso do computador, eu não conseguia pegar meus dados pessoais. Eu fui conversar com o coordenador do RH, ele disse que não precisava de motivo para me afastar.”
O funcionário classifica como “promíscua” a relação de parte de chefes do Ibama com o governo e o setor privado. “A gente foi mexendo coisas achando que estava defendendo uma comunidade local, questionando o sobrepreço de obra, questionando a pressão de outro órgão. Na verdade, a gente estava desnudando uma teia de corrupção, de má prestação de recurso público, que exigia perseguição de servidor público, claro, mas muita fraude processual.”
O servidor reforça que a prática já vem de outros governos, mas que se “normalizou” no governo atual. “Antes tinha conflito [os servidores questionavam]. Agora, não tem mais conflito. Qual é a perseguição que tem de servidor hoje? Ameaça implícita. Simplesmente as pessoas se calaram. Agora, é de uma forma normalizada.”