Festival de Berlim começa com forte tom político e vigorosa presença brasileira. Por Flávio Aguiar

Atualizado em 22 de fevereiro de 2020 às 8:51
“Todos os Mortos”, de Caetano Gotardo e Marcos Dutra, concorre a Ursos de Ouro e Prata. Filme expõe raizes e “frutos” de uma socidade escravicrata. Foto: Divulgação

Pulicado originalmente no site da Rede Brasil Atual (RBA)

POR FLÁVIO AGUIAR

Na noite de quinta-feira (20), o Festival Internacional de Cinema de Berlim começou com um forte tom político. Como já era previsto, o apresentador Samuel Finzi pediu um minuto de silêncio pelas vítimas do ataque terrorista de extrema-direita na cidade de Hanau, na noite de terça-feira. O prefeito de Berlim, Michael Múller, do Partido Social Democrata Alemão (SPD), e a ministra da Cultura e Mídia do governo federal, Monika Grütters, da União Democrata Cristã (CDU), fizeram vigorosos pronunciamentos contra o racismo, a intolerância e a extrema-direita.

Numa fala muito bem articulada, Grütters foi além. Declarou que “ninguém tem o direito de trabalhar conjuntamente com racistas e com aqueles que promovem o völkischen Kräften”. Esta expressão remete claramente ao conceito de racismo superpondo-se ao de povo, numa alusão ao passado nazista do país.

Vários comentaristas da mídia alemã viram aí uma menção direta à pregação do partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD). A legenda recentemente abalou a política alemã ao ajudar a eleger um candidato proposto pelos partidos FDP e CDU no estado da Turíngia, contra uma coligação dos partidos de esquerda.

A CDU rachou por causa disso, entre aqueles que rejeitam qualquer colaboração com o AfD e aqueles que a aceitariam em nome de “deter as esquerdas”. O argumento lembra o utilizado pelos partidos tradicionais para coligar-se ao de Adolf Hitler nos anos 30 – sendo aqueles igualmente engolidos e devorados por este nos anos subsequentes.

Os acontecimentos de Hanau provocaram reações veementes na Alemanha e em toda a Europa. Um homem identificado como Tobias Rathjen, de 43 anos, assassinou nove pessoas em dois cafés frequentados por pessoas de origem turca e curda. E feriu gravemente outros cinco frequentadores. Depois se refugiou na sua casa, onde matou a própria mãe e se suicidou, segundo a polícia, que invadiu o local já na madrugada de quarta-feira.

Deixou uma declaração de dezenas de páginas sobre a necessidade de “limpar” a Alemanha e a Europa de “estrangeiros” e “minorias” e um vídeo gravado, aparentemente com conteúdo semelhante.

Escalada de intolerância

Dentro da Alemanha o atentado alarmou todos os partidos políticos, da esquerda ao centro e aos conservadores, com exceção do AfD, que considerou ser o evento algo que nada tem a ver com a direita, mas sim com a ação isolada de um doente mental.

Políticos da conservadora CDU e mesmo de sua co-irmã bávara, União Social Cristã (CSU), engrossaram o coro de declarações dizendo que o maior problema do país hoje jaz na ação de extremistas de direita.

Autoridades de segurança divulgaram que no momento monitoram 53 suspeitos de estarem preparando atividades de extrema-direita no país, contra 22 na mesma situação em 2016 (entre aqueles monitorados não constava o nome do assassino de Hanau).

E especialistas no tema alertaram para o fato de que grupos de extrema-direita contam com policiais e militares entre seus membros, e que alguns já se valeram de informações obtidas diretamente dos arquivos policiais para planejar suas ações. Os registros oficiais falam em 200 vítimas fatais de atentados da extrema-direita desde 1990.

Com sua tradição de politização, a Berlinale não ficaria indiferente a este quadro que despertou cargas de adrenalina em todo o continente.

O Brasil no Festival de Berlim

Nesta sua 70ª edição, o Festival de Berlim conta com uma participação brasileira muito ampla e disseminada.

Kleber Mendonça Filho, o conhecido diretor de O Som ao RedorAquarius e Bacurau, integra o júri internacional, presidido pelo ator Jeremy Irons. Na entrevista coletiva que antecedeu a cerimônia de abertura, Irons fez declarações veementes, alertando sobre a discriminação contra as mulheres e a necessidade de defender seus direitos, inclusive ao aborto.

O filme brasileiro Todos os mortos, produção franco-brasileira dirigida por Caetano Gotardo e Marcos Dutra (ex-alunos da Escola de Comunicações e Artes da USP), concorre a Ursos de Ouro e Prata da competição oficial. Urso de Ouro é o troféu entregue ao melhor filme. Urso de Prata são para os prêmios de direção, ator, atriz, roteiro, curta, contribuição artística e especial do júri (espécie de vice-melhor filme)

Além disso, o Brasil estará presente em outras modalidades da mostra.

Em “Panorama”exibe Cidade Pássaro, uma coprodução franco-brasileira, dirigida por Matias Mariana. Vento Seco, dirigido por Daniel Nolasco. Nardjes A., sobre manifestações na Argélia, dirigido por Karim Aïnouz, brasileiro que se divide entre seu Ceará natal e a cidade de Berlim. O Reflexo do Lago, de Fernando Segtowick. E Un crimen común, coprodução Argentina-Brasil-Suíça, do argentino Francisco Márquez.

Na modalidade “Fórum” está com Luz nos Trópicos, de Paula Gaitán, Vil Má, de Gustavo Vinagre, e Chico Ventana también quisiera tener un submarino, coprodução Uruguai-Argentina-Brasil-Holanda-Filipinas, de Alex Piperno, uruguaio. E em “Forum Expanded”: Apiyemiyeki?, coprodução Brasil-França-Holanda-Portugal, da brasiliense e Ana Vaz, Jogos Dirigidos, de Jonathas de Andrade, e Vaga Carne, de Grace Panô e Ricardo Alves Jr.

No segmento “Generation 14plus” (para adolescentes ou de temática adolescente): Alice Jr., de Gil Baroni, Irmã, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes; e “Meu nome é Bagdá”, de Caru Alves de Souza.

Em “Curtas”: , de Julia Zakic e Ana Flávia Cavalcanti.

Em “Encounters”: Los Conductos, coprodução França-Brasil-Colômbia, de Camila Restrepo.

Essa presença brasileira marcante no Festival de Berlim é ainda herança dos anos dourados dos mandatos de Lula e Dilma na presidência. Manoel Rangel, no comando da Ancine, ajudou a catapultar a presença e o alcance do cinema brasileiro em termos de coproduções na América Latina e em outros continentes.

Oxalá o que foi semeado naquele momento não venha a se perder no clima de antagonismo, boçalidade e repressão que reina na política cultural e outras, agora, no governo de Bolsonaro, família e mediocridades associadas.