Ilú Obá de Min abre o carnaval de SP com resistência da mulher negra e homenagem a Lia de Itamaracá

Atualizado em 22 de fevereiro de 2020 às 12:14
Patrimônio Vivo de Pernambuco, Lia de Itamaracá marchou junto com os tambores do Ilú Obá de Mim. – Foto: Mauro Utida / @otroscarnavales

Publicado originalmente no site Brasil de Fato

POR MARIANA DUARTE DE SOUZA

Ao som da cantiga de Oxalá, orixá das religiões de matriz africana que representa a paz e a criação do ser humano, o Ilú Obá de Min abriu o carnaval de São Paulo e inundou a Avenida Ipiranga, no centro da cidade, na noite desta sexta-feira (21). As mais de 450 integrantes vestiam azul e representaram o mar de Lia de Itamaracá, homenageada deste ano do bloco.

O grupo cujo nome significa “mãos femininas que tocam tambor para o rei Xangô” cantou e tocou para a compositora e cantora de ciranda brasileira, que nasceu na ilha metropolitana da capital de Pernambuco e de lá, se consagrou internacionalmente como a maior representante desse folguedo.

“É um reconhecimento de 500 anos, Lia está viva, mas quantas mulheres já foram e morreram no anonimato. Então, a gente tem que aproveitar nossa projeção e este movimento negro de agora para recontar esses 500 anos. Homenagear nossas mulheres negras vivas, bater cabeça para quem faz história num país tão racista e Lia faz histórias, ela e toda sua trajetória de vida são vitoriosas”, afirma Beth Beli, presidente, diretora artística, regente e uma das criadoras do bloco e instituição Ilú Obá De Min.

Nesses 16 anos de existência, símbolos como Rainha Nzinga, Leci Brandão, Raquel Trindade, Nega Duda, Carolina Maria de Jesus e Elza Soares já foram homenageados, esse ano a proposta é não só trazer um carnaval político, mas também de amor.

“Esse carnaval a gente vai navegar um pouco pelo mar, trazer nossas ancestrais e fazer uma grande ciranda, porque está precisando de muito amor”, destaca Beli na concentração do bloco na Praça da República.

Nessa travessia pelas ruas do centro, mestres e mestras tais como Tião Carvalho, Família Solano Trindade, Mestre Alcides, Toninho Macedo, Ya Sandra de Xadantã, compuseram a ala da cultura popular.

A mestra de capoeira angola Janja do grupo Nzinga foi uma delas e desta vez deixou de tocar alfaia, um dos instrumentos da bateria, para levar o estandarte do bloco em frente a marcha.

“Estar aqui significa o que nós precisamos fazer, mais do que nunca, que é ocupar as ruas. O Ilú Oba de Min é a organização que possibilita nós mulheres pensarmos essa ocupação de maneira criativa e contundente. É a primeira vez que eu estou na ala de frente e é uma emoção gigantesca porque adotar o tema das culturas populares é afirmar o lugar da cultura popular nesse contexto”.

Logo atrás, o corpo de dança composto não só por mulheres, mas também por homens, vestia, como já manda a tradição, representações dos 16 orixás das religiões de matriz africana. Ao som das cantigas do Xirê as ruas da capital paulistana viajavam pela história da cultura afro-brasileira e de Lia de Itamaracá, que pode, em pleno cortejo, reverenciar sua mãe Iemanjá.

Não à toa, a assessora Rosana da Silva, integrante do grupo há 5 anos, sente como se cada carnaval fosse o primeiro.

“Cada ano que passa eu percebo que é o coletivo que nós todas deveríamos estar, é um aprendizado novo, a cada ano a gente se fortalece mais. Aqui é onde a gente aprende a descobrir a nossa ancestralidade e nossa religiosidade.”

Lia chegou a descer do carro montado especialmente para o seu translado, e no meio dos tambores e danças pôde cumprimentar e abençoar seus irmãos e irmãs, griots da cultura popular, ao som de músicas compostas pelas integrantes especialmente para ela.

Mesmo já sendo reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco, recebido homenagens como a medalha nacional da Ordem do Mérito Cultural, a rainha da ciranda, como é conhecida, disse ao Brasil de Fato estar “maravilhada e muito feliz” com a homenagem do Ilu Obá de Min.

O sentimento de Lia estava nos olhos e nos acenos ao público que gritava entusiasmado ao ter honra de ver um dos símbolos da identidade brasileira. A alegria ficou completa quando o cortejo desembarcou no Largo do Paissandú, centro de São Paulo, e ao redor da menina de 76 anos se fez uma grande ciranda.

Mesmo com algumas tentativas de assalto e violência do lado de fora do cordão, que durante o trajeto não foi acompanhado pela segurança pública, a mestra agradeceu imensamente o convite e entoou a ciranda tradicional que dá seu nome artístico, além da música:

“Essa ciranda não é minha só,
É de todos nós,
A melodia principal quem tira
É a primeira voz

Pra se dançar ciranda
Juntamos mão com mão
Fazendo uma roda
Cantando essa canção”

Em seu discurso Lia ainda pediu amor e o fim da violência, como as mãos dadas da ciranda representam. E assim como o Ilú Obá de Min, ela trouxe ao carnaval de São Paulo, a partir da reverência a da história, a representatividade da Rainha da Ciranda.