Agrotóxicos: Pacote do Veneno avança no governo Bolsonaro

Atualizado em 4 de março de 2020 às 19:31
Brasil aprova liberação de agrotóxicos proibidos em outros países devido à toxicidade à saúde humana e ao meio ambiente – Foto: Agência Brasil

Publicado originalmente na Rede Brasil Atual 

Chefiado pela ministra Tereza Cristina – a “musa do veneno” –, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) publicou nesta segunda-feira (2) a liberação de mais 14 agrotóxicos. A lista traz ainda dois outros produtos de ação biológica, totalizando 16 defensivos, como preferem os ruralistas. Desde que Jair Bolsonaro e sua ministra tomaram posse, já foram liberados um total de 551.

É como se a cada dia de governo eles dessem sinal verde para a comercialização de mais de um novo produto. “Esses 16 são um prenúncio de que vão aprovar muito veneno novo em 2020”, avalia Marcos Pedlowski, professor e pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), que criou uma espécie de observatório da liberação de agrotóxicos no atual governo.

Outra avaliação é que a maioria dos produtores favorecidos pela liberação, muitos vinculados à associação CropLife, têm como fabricante primária uma empresa localizada na China. “Este fato reforça a relação direta entre Brasil e China no circuito mundial dos agrotóxicos e na grande circulação de commodities agrícolas. O problema é que as commodities brasileiras valem sempre menos que os agrotóxicos chineses, deixando ainda mais evidente quem sai ganhando ou perdendo nessa parceira envenenada”, diz.

Risco rebaixado

Segundo a coordenação-geral de agrotóxicos e afins do Mapa, nove são classificados como produto improvável de causar dano agudo (categoria V). Apenas um é considerado altamente tóxico (categoria II), dois são moderadamente tóxicos (categoria III) e outros dois são pouco tóxicos (categoria IV). A julgar pela classificação, trata-se de produtos mais modernos e pouco nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Mas não é bem assim. “Ao menos quatro dos agrotóxicos do último lote de liberação – glufosinato, sulfentrazona, diafentiurom e tiodicarbe – estão proibidos pelo menos na União Europeia. O que põe fim à falácia da modernização como base para a liberação dessa enxurrada de novos venenos”, ressalta Pedlowski.

A aparente segurança dos novos produtos liberados resulta de uma reclassificação de toxicidade, para baixo, que a Anvisa implementou em julho passado. Foi quando por meio de seu novo marco legal, a agência conferiu a agrotóxicos extremamente tóxicos uma roupagem nova, tornando-os “produto improvável de causar dano agudo” em um passe de mágica. É o que aconteceu com algumas marcas de glifosato. Associados ao surgimento de diversos tipos de câncer, além de alterações endocrinológicas causadoras de outras doenças igualmente graves, agora são pouco tóxicos.

Na ocasião foram feitas também mudanças na rotulagem. Produtos que podem causar lesões severas nos olhos e na pele – antes classificados como extremamente tóxicos – tiveram a tarja vermelha e o símbolo da caveira substituídos por tarjas amarelas e símbolo de atenção, o que tem sido duramente criticado.

“O Brasil adotou o padrão internacional GHS para rotulagem de produtos químicos, mas não para a classificação de risco. Enquanto os europeus descartam previamente a análise de risco de produtos identificados como perigosos, porque podem causar câncer, alterações genéticas e problemas reprodutivos entre outros, nós não fazemos isso. Nossa análise de risco inclui um número maior de venenos, aprovando com classificação de risco desprezível alguns que nem podem ser aplicados nos países europeus”, diz o agrônomo Leonardo Melgarejo, integrante da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida. “Com essa nova regra, que classifica como extremamente tóxico apenas produtos que causem morte, o problema é agravado, porque produtos com risco desprezível de morte podem ter alto risco de causar cegueira, por exemplo.”

Aprovação automática

Cinco dias antes da mais recente liberação, o Ministério da Agricultura havia baixado a Portaria 43, que concede autorização automática de agrotóxicos mesmo sem avaliação dos seus benefícios – e malefícios – à produção agrícola. Ou seja, caso um pedido de registro não seja avaliado em 60 dias, será aprovado tacitamente, sem explicações ou menções a respeito.

“Um ministério que não ampliou sua capacidade de análise, o número de analistas, os laboratórios, como poderia reduzir o prazo das análises? Que analises seriam estas, que podem admitir dispensa? Estudos de impactos sobre redes tróficas, sobre organismos não alvo, sobre a saúde humana e ambiental, exigem avaliações de longo prazo”, critica Melgarejo.

A portaria, que entra em vigor em 1º de abril, não menciona a Anvisa e o Ibama, que conforme a legislação brasileira participam do processo. E acabou alvo de desconfianças até mesmo dos próprios fabricantes de agrotóxicos genéricos e de especialistas alinhados ao agronegócio, que pedem mais rigor.

Bolsa veneno

Para os analistas, a liberação recorde de 551 novos produtos, as mudanças na classificação de risco feitas pela Anvisa e a adoção da autorização automática na última semana são ações coordenadas. E com objetivo definido: revogar, na prática, a atual Lei de Agrotóxicos e congelar políticas de redução do uso e de taxação de agrotóxicos conforme a periculosidade.

“Com o rebaixamento pela Anvisa da classe de toxicidade de quase 600 produtos para baixa ou nula, ficará mais fácil justificar a aprovação tácita de agrotóxicos elaborados com aqueles princípios ativos. Outra implicação recai sobre os impostos. A taxação diferenciada para venenos como o 2,4-D, o glufosinato de amônia e malationa em função de sua toxicidade, fica inviabilizada quando deixam de ser produtos de toxicidade elevada, tornando-se de baixa toxicidade”, aponta Melgarejo.

No dia 19 de fevereiro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, adiou a decisão da Corte sobre os bilionários incentivos tributários concedidos aos agrotóxicos, beneficiando a multimilionária indústria do setor – uma espécie de “bolsa veneno”.

Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade protocolada em 2016 pelo Psol questiona dois artigos do Convênio 100 ICMS/1997, que reduzem em 60% a base de cálculo das alíquotas nas vendas de agrotóxicos para outros estados. E de 60% até 100% em vendas no âmbito estadual. Isso equivale a uma alíquota de 2,8% nas vendas destinadas aos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste e 4,8% nas operações destinadas aos estados do Sul e Sudeste.

Em 2016, o setor faturou R$ 33 bi e pagou R$ 1 bi de ICMS. Sem o convênio, pagariam R$ 3,4 bilhões. A isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em relação a alguns produtos também é questionada na ação, mas os agrotóxicos são isentos do pagamento de contribuições como o PIS/Pasep e Cofins, fora outros incentivos. O que se defende é que os produtos sejam taxados conforme a toxicidade, cumprindo assim o princípio tributário da seletividade.

“Como penalizar venenos que deixaram de ser venenos, ou reclamar de estudos nulos, sobre produtos que não são mais tóxicos? Estudar para que, se já se sabe que não são mais tóxicos?”, questiona Melgarejo.

Esse aspecto tem impacto direto também sobre o Projeto de Lei (PL) 6670/2016, apresentado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara).

Em um de seus artigos, o projeto que está pronto para ser votado determina a utilização de medidas econômicas, financeiras e fiscais para desestimular o uso de agrotóxicos, com ênfase nos produtos de maior risco e perigo toxicológico e ecotoxicológico e estimular os sistemas de produção orgânico e de base agroecológica.

Raposa no galinheiro

Pedlowski entende que o fortalecimento da Agricultura vem com o enfraquecimento da Anvisa, que tem seu início no final de 2012, com a demissão do então gerente-geral de Toxicologia do órgão, Luiz Cláudio Meirelles, após denunciar casos de suspeita de corrupção e irregularidades na liberação de agrotóxicos. Entre eles, que sua assinatura foi falsificada em documentos da agência, o que o levou a suspender a tramitação dos processos de alguns produtos.

“Desde a demissão do Luiz Claudio Meirelles, há um paulatino enfraquecimento dos órgãos de controle dos agrotóxicos e organismos geneticamente modificados. Mas no governo Bolsonaro isto está acontecendo de forma ainda mais aguda. Estamos em uma explícita entrega do galinheiro para as raposas tomarem conta. Com isso, estamos vendo essa tsunami de aprovações não apenas de agrotóxicos mas também de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). Junta o pior dos mundos, pois uma coisa puxa a outra. Estamos nas mãos das corporações.”

Há ainda que se destacar, segundo ele, o corte de financiamentos para a agricultura familiar e a abertura da Amazônia para o cultivo de cana de açúcar. “Isso tudo me parece muito bem articulado. Não há nada acidental. Não há saída sem que se articule um esforço entre cientistas, movimentos sociais, camponeses, quilombolas e indígenas. Temos que fortalecer também a cooperação internacional. Não é porque a coisa está ruim que não existem saídas. Mas teremos que vencer a inércia e partir para essas articulações.”

Em 2018, Tereza Cristina presidiu a comissão especial na Câmara que aprovou substitutivo para o PL 6.299 e apensados, que revoga a lei dos agrotóxicos.

O PL ficou conhecido como Pacote do Veneno ou PL do Veneno. Em resumo, facilita a aprovação de novos produtos com base em estudos em outros países, retira a Anvisa e o Ibama da edição ou propositura de normas, inclusive o processo de reavaliação, deixando sob o controle do Ministério da Agricultura.

A agência de vigilância sanitária perde também para a pasta a prerrogativa de realizar o programa de análise de resíduos de agrotóxicos nos alimentos. Outra mudança é a avaliação de risco pelas próprias empresas interessadas no registro de produtos que ofereçam risco de causar malformações, câncer, mutação genética e distúrbios hormonais.

A então deputada federal pelo DEM-MS ganhou o apelido de “musa do veneno” pelo empenho na aprovação do projeto. Como um trator, passou por cima do regimento e da manifestação de todas as entidades de saúde, meio ambiente, direitos humanos, nutrição e de defesa do consumidor do país, órgãos públicos, conselhos, Ministério Público, Defensoria, entidades de classe, institutos de pesquisa, universidades e até das Nações Unidas, que pediram o arquivamento da proposta.

O pacote não foi arquivado, mas a intensa pressão social colocou em risco a aprovação no plenário da Câmara, apesar da poderosa bancada ruralista financiada pelo agronegócio. Meses depois, com a eleição de Bolsonaro, apoiado por este mesmo setor, ela ganhou o comando do ministério que na prática implementa as medidas do PL que aprovou em comissão especial.