Publicado originalmente no site Brasil de Fato
POR NARA LACERDA
Diante das medidas anunciadas pela Petrobras na tentativa de minimizar os efeitos econômicos causados pelo coronavírus, os trabalhadores da estatal recorreram ao Ministério Público para tentar reverter a perda de direitos. Ao anunciar um corte de 200 mil barris na produção diária, a empresa reduziu em 25% a jornada de 20 mil funcionários administrativos, com corte proporcional nos salários. Os turnos de trabalho também foram alterados para mais de 3,2 mil petroleiros e haverá perda de gratificações adicionais de 60% nas refinarias e de 95% nas plataformas.
A Federação Única dos Petroleiros (FUP) destaca que, enquanto pede resiliência a mais de cinquenta mil trabalhadores, a empresa blinda dos impactos a gerentes, assistentes, consultores, coordenadores, assessores, supervisores e outros cargos de chefia. Para esses cargos, as gratificações serão apenas postergadas e não cortadas. Na denúncia, a FUP e os sindicatos que representam os petroleiros afirmam que a direção da Petrobras está usando o momento de pandemia para intensificar o desmonte da empresa.
As entidades ressaltam que as decisões têm forte impacto nas relações trabalhistas e foram tomadas sem nenhum tipo de negociação. No documento encaminhado à Procuradoria Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, a FUP sugere alternativas que podem preservar os trabalhadores. A principal delas é a suspensão de pagamentos de dividendos aos acionistas e reajustes, bônus e programas de remunerações variáveis para os gestores. Segundo os cálculos da Federação, a empresa pouparia até R$ 4,4 bilhões, quase o dobro do que anunciou que reduzirá de despesas com pessoal (clique aqui para ler a proposta na íntegra).
Sai soberania, entra o lucro dos acionistas
As práticas recentes da Petrobras, no entanto, indicam que a proteção aos trabalhadores não é prioridade. Economistas ouvidos pelo Brasil de Fato avaliam que no governo atual o foco da Petrobras deixou de ser a soberania brasileira na produção de derivados do petróleo e energia e passou a ser o lucro dos acionistas.
As medidas de enfrentamento poderiam ter caráter mais sustentável, de acordo com os especialistas, se a estatal não estivesse passando por um processo de desmonte desde 2016. De lá para cá, o foco na extração e exportação de petróleo cru aumentou. Com isso, a empresa fica dependente dos preços praticados no mercado internacional, que estão cada vez mais baixos.
O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (Ineep), Eduardo Costa, avalia que, frente ao que pode vir a ser a pior crise econômica desde 1929, a Petrobras está completamente enfraquecida.
Ao se tornar exportadora de óleo cru e não investir em distribuição e refino, a estatal brasileira certamente será umas das que mais terá dificuldades em se reerguer. As concorrentes estrangeiras, segundo Costa, chegarão ao momento de recuperação com larga vantagem. O Brasil perde em criação de tecnologia, valorização da mão de obra qualificada e preservação do mercado interno.
“Há algumas estimativas no mercado internacional de que a demanda por petróleo no mundo vai cair em torno de 8% este ano, o que significa uma enorme desaceleração econômica. No mercado internacional o preço está no chão e a demanda vai cair. Quando o preço estava alto, a empresa estava lucrando muito em cima do consumidor. Agora, se ela seguir e não levar em conta os custos de produção e montar um preço com base nessa queda, terá um prejuízo enorme”, argumenta.
Na opinião do pesquisador, a importância do investimento em refino está cada vez mais óbvia frente à crise. “Os gestores vão perceber que, se não fosse o refino, a Petrobras ia estar na lona. Se ela dependesse de vender petróleo para refinarias privadas ela ia ter vender ao preço internacional. A fonte de caixa, se tivesse vendido 50% do refino, ia cair ainda mais. Isso talvez gere alguma mudança. Acho que nesse ano dificilmente eles vão tentar vender refinaria. Não vou dizer que é impossível, porque o grau de insanidade de alguns dos nossos gestores e setores dominantes é enorme.”
Cloviomar Cararine, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e assessor da FUP, afirma que mesmo sem o coronavírus, a redução do preço do barril no mercado internacional já coloca em cheque a estratégia atual da Petrobras.
Segundo ele, desvalorizar o refino e se concentrar em exportar para poucos países fragiliza a estatal. No ano passado 70% da produção foram para a China e 10% para os Estados Unidos, países com economias profundamente atingidas pela pandemia. Somado a essa fragilidade está o processo demissão de trabalhadores, que por meio de um plano de demissão voluntária, atinge principalmente os funcionários mais experientes.
“No caso do preço que caiu, é uma característica do setor essa instabilidade de preços e nós temos uma pandemia que vai passar. Tomar decisões de longo prazo e estruturais num momento como esse é muito ruim. O ideal agora é tomar medidas paliativas, como reduzir risco de contaminação de pessoal, mas sabendo que vai passar e já estar preparada para possibilidade de queda no preço do barril, que é algo comum.”
Compromisso com trabalhadores e com o país
Cararine ressalta que as medidas tomadas até agora não reduzem o risco de contaminação para trabalhadores que estão em refinarias e prejudicam trabalhadores terceirizados. O Dieese divulgou uma nota técnica comparando a ação das empresas petroleiras pelo mundo e as decisões da Petrobras frente a pandemia. A conclusão é de que as práticas adotadas pela estatal estão muito atrás (leia aqui).
O economista lembra que uma empresa estatal tem um papel a ser cumprido em momentos de crise. Segundo ele, os estoques da Petrobras estão cheios há alguns meses e o Brasil já vem consumindo menos combustível desde o início do ano. Frente a essa realidade, os esforços poderiam ser direcionados à demanda por gás de cozinha, por exemplo, que aumentou em tempos de isolamento social. Os preços estão subindo em diversas regiões. A Petrobras poderia garantir a produção e ao controle dos valores, mas ao contrário disso, o Brasil tem importado o produto. Cloviomar traz outras possibilidades que poderiam ficar a cargo da estatal em meio a crise.
“Por um lado ela poderia criar mecanismo para ajudar a população: por exemplo reduzir preços dos derivados. Poderia também ajudar equipamentos de saúde e segurança, como ambulâncias e viaturas e oferecer o combustível até de graça. É uma forma de ajudar o país. A Petrobras tem um centro de pesquisa que é um dos melhores do mundo. Esses pesquisadores poderiam ajudar na produção de tecnologia para enfrentar a pandemia.”
As medidas que prejudicam os trabalhadores carecem de base jurídica, segundo análise da FUP. A realocação do pessoal de turno sem indenização fere o Artigo 9º, da Lei 5.811, de 1972. Além disso, a redução de jornada e remuneração do pessoal administrativo fere o Artigo 468, da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). Os sindicatos filiados à Federação se movimentam para tomar medidas cabíveis e barrar as ações.