Coronavírus reforçará os laços de desigualdade já inerentes à sociedade, diz pesquisador

Atualizado em 13 de abril de 2020 às 20:37
Professor Claudio Bertolli Filho. Foto: João Rosan/JC Imagens

Publicado originalmente pelo JCNet:

Por Cinthia Milanez

Pesquisador das Ciências Sociais aplicadas à medicina, o professor adjunto aposentado da Unesp, em Bauru, Claudio Bertolli Filho resolveu sair da “quarentena” que ele impôs à imprensa para contribuir com uma visão mais focada no comportamento humano diante da pandemia do novo coronavírus. Segundo ele, o medo exerce um papel tão devastador quanto a doença em si, afinal, leva à irracionalidade.

Claudio tem 64 anos e se considera um fumante inveterado, aspectos que o encaixam no grupo de risco da Covid-19. No entanto, ele diz não ter medo da morte. Inclusive, prepara um novo livro sobre o tema.

Formado em História e Ciências Políticas e Sociais, o livre-docente chegou a publicar outra obra, em 2003, intitulada “A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade”. A pesquisa lhe dá embasamento para comentar sobre as eventuais coincidências daquela época com o cenário atual. Confira, abaixo, alguns trechos da entrevista.

Jornal da Cidade – O senhor publicou um livro sobre a gripe espanhola, em São Paulo. Quais são as coincidências desta epidemia com a pandemia do novo coronavírus?

Claudio Bertolli Filho – Na minha opinião, não podemos comparar a gripe espanhola com a Covid-19. Na época da epidemia estudada por mim, São Paulo possuía apenas 500 mil habitantes e poucos médicos, sendo que muitos deles sequer acreditavam no papel patológico dos micróbios. Talvez, a mídia esteja equiparando um fato ao outro, porque a gripe espanhola foi o primeiro grande surto coberto pela imprensa. No entanto, não sou eu quem está dizendo, afinal, temos livros antigos que tratam disso, qualquer pandemia ou epidemia de proporções mortais avassaladoras funciona como uma opereta, cujos atos se repetem.

JC – Que tipo de atos?

Claudio – Em um primeiro momento, você tem a informação de áreas específicas do planeta que conhecem uma nova enfermidade, cujas morbidade e letalidade são altas. O mundo não dá muita importância. Quando a doença começa a se disseminar, acreditamos que nunca chegará até nós. Tão logo ela nos atinge, cada indivíduo pensa que não será infectado. A enfermidade, então, afeta grupos específicos. Em seguida, reconhecemos que qualquer pessoa está suscetível. A partir disso, passamos a seguir as regras vigentes, envolvendo a higiene e a quarentena. Paralelamente, acabamos contaminados por uma segunda pandemia, a do medo. Então, nós temos uma admissão pública da religião ou da proteção divina como uma das estratégias de superação. Outros creem que as epidemias nos deixam mais humanos. Os EUA demonstraram toda a sua humanidade mesmo, ao “confiscarem” EPIs e respiradores oriundos da China.

JC – Podemos, então, considerar o medo como uma segunda pandemia?

Claudio – Sem dúvida. Quando eu tenho o medo, namoro com a irracionalidade. Por isso, entram Deus, diabo e, até mesmo, um inimigo em comum, como os comunistas, os pobres ou os chineses, no caso do novo coronavírus.

JC – Como fugimos disso?

Claudio – Não dá para evitar, faz parte da existência humana.

JC – As desigualdades também se tornam mais evidentes?

Claudio – Em toda epidemia, parte da elite governamental e da população que a apoia acredita que a doença seja superestimada. Apesar disso, as mesmas pessoas defendem a necessidade de ficar em casa e se cuidar. Porém, aqueles que as servem precisam estar sempre a postos. No prédio onde vivo, situado ao lado da Praça Portugal, em Bauru, os seus funcionários continuam trabalhando. Um dos zeladores, mais velho do que eu, se dirige ao supermercado para fazer compras no lugar dos moradores. As relações de classe, portanto, se tornam mais evidentes neste contexto. No livro “A Peste”, o autor cita uma frase que eu acho supimpa: “A peste revela uma sociedade doente”. Esta última palavra não possui uma concepção sanitária, mas comportamental. Qualquer que seja a epidemia, ela mostra as desigualdades sociais.

JC – Quais são os rumos que uma epidemia pode tomar?

Claudio – Há três alternativas. Em primeiro lugar, a doença pode circular livremente e matar muita gente. A segunda opção consiste na possibilidade da descoberta de um medicamento eficaz. A terceira, por fim, envolve o processo de mutação gênica do vírus, no caso da Covid-19. Com isso, o organismo tem chances de se tornar menos infeccioso.

JC – A gripe espanhola deixou alguma herança?

Claudio – Devido ao trauma causado pela gripe espanhola, a partir de meados da década de 30, os laboratórios de todo o planeta ficaram incumbidos de analisar os vírus das suas respectivas localidades. Em seguida, enviavam os resultados para uma unidade central, que passou pela Inglaterra e pelos EUA. Além disso, já se projetava, em 1918, que, dentro de 100 anos, a mutação do organismo, até então desconhecido, resultaria em uma grande epidemia. O fenômeno, portanto, não é novo. Tanto que eu coloquei tal informação no meu livro, publicado em 2003, mas a minha editora tirou, porque considerou parecer alarmismo barato.

JC – Em termos de relações sociais, como a sociedade sairá desta pandemia? Algo mudará quanto às desigualdades?

Claudio – Haverá apenas a manutenção do pré-existente. Provavelmente, teremos uma crise econômica que tornará a luta pela sobrevivência ainda mais doentia. No final das contas, o resultado reforçará os laços de desigualdade já inerentes à sociedade, fato que também aconteceu após a gripe espanhola, a malária, a febre amarela etc.

JC – Ainda em termos de relações sociais, houve alguma evolução da gripe espanhola para cá?

Claudio – A epidemia ocorreu em 1918, em São Paulo. Nos anos de 1917 e 1919, antes e depois dela, a Capital Paulista sediou duas grandes greves anarco-operárias. Em ambas as datas, os grupos reivindicavam direitos sociais básicos, incluindo o de nenhum cidadão acabar violentado pela polícia. Será que houve alguma mudança?

 JC – Existem aspectos positivos neste atual cenário?

Claudio – Eu detesto aquele tipo de discurso, não sei se é o seu, de que precisamos sofrer para nos purificar. Na minha concepção, qualquer situação negativa não traz benefício algum. Muitas pessoas destacam o aumento da solidariedade em épocas como esta, mas tal atitude deveria existir com ou sem crise, principalmente, por parte dos que se dizem cristãos. A pandemia tem a função de jogar na nossa cara dois pontos essenciais: as desigualdades sociais, além das limitações do saber e da prática médica.

JC – O senhor disse que tem 64 anos e fuma cinco maços de cigarro por dia. Tem medo de ser infectado pelo coronavírus?

Claudio – Posso ser sincero sem ser trágico? Não tenho medo de morrer. Claro que tomo os cuidados básicos, mas sei que qualquer pessoa pode acabar contagiada.

JC – Como o senhor se previne?

Claudio – Praticamente, eu fico em casa. Moro sozinho, mas conto com a ajuda do zelador, do funcionário do supermercado, que faz as compras, bem como do cara que traz o meu cigarro. Se precisar sair, levo máscara e álcool em gel.

JC – A rotina do senhor mudou muito?

Claudio – Nunca gostei de sair de casa. Depois da minha última separação, descobri que o meu bem-estar está relacionado a não ter gato, cachorro, mulher, filhos etc. Desde que me aposentei, a minha alegria é manter a rotina. Acordo cedo, tomo café e começo a fumar. Mais tarde, almoço, escrevo, assisto a filmes e leio, em média, um livro por dia.

JC – O senhor estabeleceu uma “quarentena” à imprensa. Por que aceitou falar conosco?

Claudio – Já fui chefe de departamento da Unesp, em Bauru, cargo que exigia pontuações. As entrevistas, portanto, preenchiam este quesito. Nos últimos anos, concedi mais de 70 delas a cada 12 meses. E pior: sobre as coisas mais absurdas. Certa vez, um ex-aluno que trabalhava no Acre me ligou para comentar sobre o desmatamento daquele local. Quando me aposentei, decidi parar. Só falei com o JC, porque guardo um carinho muito especial por vocês.