“Há certas coisas que você não pode deixar de fazer”, digo a Pedro, meu filho do meio. Estamos voltando do Hurlingham Park, onde jogamos tênis. Vestimos ambos apenas camisa polo e bermuda. Londres está gloriosamente quente.
“Eu, por exemplo. Não fui ao enterro do Mario Watanabe. Não lembro o que aconteceu. Mas não fui e deveria ter ido. Há certas coisas que você não pode deixar de fazer.”
O enterro do Mário era uma delas.
Estou falando mais para mim do que para Pedro, mas acho que ele deve ouvir meu lamento.
Mário entrou na conversa por acaso. Estávamos falando de escola. Pedro lembrou um professor. Disse a ele que sempre respeitei muito os professores por causa de papai e mamãe, ambos professores. Não queria fazer a nenhum professor algo que não gostaria que fizessem a meus pais.
Foi aí que entrou Mário. Vata ou Vatinha, como o chamávamos.
Mário foi aluno de papai no Ceneart, em Osasco. Acabou se tornando jornalista, como seu professor de literatura. Mario militou no jornalismo econômico, primeiro na Gazeta Mercantil e depois na Exame, onde nos conhecemos. Foi lá que ele me contou que estudara com papai.
“Eu era pobre, não tinha dinheiro para fazer cursinho e nem para comprar livros”, ele me contou. “Fiz a prova de português apenas com as anotações das aulas de seu pai. Sabia todas as questões do exame por causa do que aprendi com seu pai.”
Mário era o oposto do jornalista típico. Era discreto, silencioso. Falava baixo. Olhando em retrospectiva, vejo que foi com ele que travei o primeiro contato com a cultura oriental.
Era um copidesque dos melhores que conheci na carreira. Dominava a língua. Não deixava que os textos trouxessem repetições. Às vezes, exagerava até. Lembro que num artigo sobre suicídio ele usou a palavra “auto-imolação” em determinado momento. Achei graça.
Mário, organizado, metódico, cuidou durante anos das edições de Melhores e Maiores. Eram muitos números, muitas listas, muitas tabelas, e os jornalistas, normalmente, se atrapalham com essas coisas. Mário não.
A última vez que o vi foi na Editora Globo.
Sorridente, como sempre. Saudável, vigoroso em seus 60 e poucos anos. Cabelos fartos, divididos do lado, e apenas ligeiramente grisalhos. Mário já estava aposentado. Mas fazia trabalhos ocasionais, e estava na Globo para combinar um deles.
Foi bom vê-lo, como sempre.
Ele me contou que havia uma rua perto de sua casa com o nome de meu pai, Emir Macedo Nogueira.
Poucos meses depois, um amigo me ligou para avisar que Mário morrera. Rapidamente. Não houve doença, não houve agonia. Júlio César disse que o maior presente que um homem pode receber dos deuses é uma morte rápida.
Mário recebeu esse presente.
Foi um dos bons jornalistas com quem trabalhei, e talvez o mais discreto entre os que fizeram parte de alguma equipe que dirigi. Nunca o vi alimentar fofocas, uma coisa tão comum entre os jornalistas, e um traço que particularmente abomino.
O que me deteve na hora de ir ao enterro? Não lembro. Se não me engano, eu estava no meio da crise que culminaria em minha saída da Globo. Paradoxalmente, eu que me cercara de algumas pessoas de caráter tão frágil e traiçoeiro, gente que parecia capaz de pagar para se vender, deixei de prestar um tributo a uma das pessoas mais leais que conheci.
Há certas coisas que um homem não deve deixar de fazer, penso ainda uma vez a caminho de casa, andando pela Napier Road, o rosto de Vata em minha mente. Ou depois em algum momento esse homem olhará para trás e se perguntará por quê, sem encontrar resposta, e por isso se sentirá estranhamente pequeno.