Publicado originalmente na Agência Pública
Por José Cícero da Silva
No dia 10 de abril, Mário Gonçalves, 30 anos, acordou bem – apesar de se sentir pouco febril e sem paladar havia alguns dias. Tomou café com a esposa e em seguida foi ao mercado com ela. Após o almoço, começou a notar a dificuldade para respirar, comentou com a companheira como se sentia e, diante dos sintomas, resolveram ir até um hospital.
Gonçalves tem convênio médico pela empresa de segurança em que trabalha e foi direto para um hospital privado na região dos Jardins, onde foi feito o raio-x do pulmão. O médico pediu uma tomografia com urgência, porém a unidade não possuía o equipamento e Mário foi para outro hospital, na zona leste. Ao chegar à triagem e mostrar o resultado do raio-x, a equipe médica imediatamente se paramentou com os equipamentos de proteção e, após a tomografia, Mário foi direto para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), junto a outros pacientes com suspeita e confirmação de contaminação pela Covid-19.
Mário ficou oito dias internado na UTI do hospital da rede privada Santa Clara. Metade desse tempo esteve conectado a uma máscara que cobria todo o seu rosto e mandava uma forte pressão de ar para o pulmão. “O órgão precisava de estímulo para começar a reagir, porque parte dele não estava respondendo. O doutor escutava um lado, mas o outro não”, conta ele, ainda ofegante (resquício do trauma recente), quatro dias após a alta hospitalar.
O medo de Mário, durante período de internação, era que houvesse a necessidade de ser intubado. No tempo em que ficou no hospital, presenciou pelo menos cinco óbitos, segundo ele, de pacientes intubados. “Foi o que eu vi. Pessoas que estavam na minha frente, que eu brincava, tentava animar – porque não estavam bem –, foram intubadas e não resistiram. Eu fugi muito do intubamento. Os médicos foram [até o leito] umas cinco vezes para me intubar. Quando via que eles estavam chegando, tentava respirar mais forte, para mostrar que estava me recuperando, aí eles viam que a saturação estava um pouco melhor e desistiam. O intubamento não é uma coisa ruim, mas é um dos últimos recursos, só que se, você não reagir, já era”, diz. Mário não queria chegar ao ponto de utilizar o último recurso para preservar a vida.
Por ter o costume de ficar em casa, Mário desconfia que tenha se contaminado em uma de suas poucas saídas para fazer compras em mercados do Jardim Guarani, Brasilândia, zona norte de São Paulo. É ali que ele mora com a esposa, que “por milagre” não pegou o vírus. “Aqui [no mesmo quintal], só ela não teve os sintomas ainda. Minha sogra e meu cunhado tiveram e estão se recuperando, mas não chegaram a ir pro hospital. Aqui na Brasilândia estamos inseguros. Essa é a sensação.”
Para ele, o receio de sair às ruas se tornou uma preocupação depois de sobreviver à internação. No início, quando começaram as medidas de isolamento social em São Paulo, Mário conta que até se precavia utilizando máscara e higienizando as mãos como recomendado, mas também “achava que era uma gripezinha normal porque via na televisão que o ‘H1N1 mata mais que ela [Covid-19]’. Não sabia que o negócio era grave assim. A gente só sabe quando pega, né? Não é uma gripezinha, não. Deu falta de ar, corre pro hospital, senão pode ficar complicado”, orienta.
O distrito da Brasilândia, pela terceira semana consecutiva, é o que tem mais casos de mortes confirmadas por Covid-19 ou por suspeita da doença na capital paulista, epicentro da pandemia no Brasil. Os últimos dados fornecidos pela a assessoria da Prefeitura de São Paulo entre 11 de março e 30 de abril ocorreram 103 mortes no distrito.
Apesar dos números, das recomendações das autoridades municipais e estaduais e do esforço dos profissionais de saúde que atuam na região, a rotina nos bairros segue quase a normalidade pré-quarentena. O fluxo de pessoas é grande nas principais ruas e avenidas, assim como nos becos e vielas das comunidades. Elaine Reis, agente de saúde de uma das Unidades Básicas de Saúde (UBS) que atende a região, não se conforma com a atitude das pessoas – São Paulo vem registrando quedas cada vez maiores dos que se mantêm em casa conforme as recomendações das autoridades de saúde.
“Infelizmente os munícipes não estão se cuidando como deveriam, as pessoas estão confundindo quarentena com férias. As crianças estão nas ruas brincando com suas bolas e bicicletas como se estivessem curtindo as férias merecidas, adultos empinando pipas, conversando e fumando narguilés.”
Não por falta de informação, pondera Elaine, “pois os meios de comunicação estão todos os dias postando informações sobre o assunto, casos de mortes e de pessoas infectadas”, diz. “Toda semana as UBS do bairro estão saindo com carro de som, passando mais informações sobre essa pandemia e pedindo para que a população fique em casa, mas alguns ainda não se conscientizaram. O povo só acreditará quando acontecer com um ente querido. Essa é a realidade da população e a minha maior tristeza e indignação, pois estamos mostrando a todos que não é uma brincadeira, mas as pessoas estão agindo como se fosse”, desabafa a agente de saúde.
Na rua Parapuã, umas das vias de comércio mais movimentadas da Brasilândia, a reportagem encontrou agentes de saúde da UBS Jardim Guarani orientando a população local sobre a pandemia. “Queremos informar que temos casos de pessoas internadas em UTI, intubadas, e já tivemos óbitos de moradores no Guarani e em outras regiões da Brasilândia. Por isso pedimos que quem pode fique em casa. Se precisarem sair, mantenham o distanciamento, usem máscaras, não levem as mãos aos olhos, nariz e boca antes de lavar as mãos. Protejam-se pela sua família e pelo próximo. A Covid mata!”, repetia a agente.
O inspetor de alunos Márcio Massari, 48 anos, é outro que se diz espantado com a reação dos moradores diante do avanço da pandemia. “Se você vier aqui à tarde, vai ver como está. Os bares ficam lotados, as crianças empinando pipa. Domingo agora [26 de abril] tinha umas 300 motos andando pelo bairro”, conta. Ele pega o celular, entra numa página do Portal da Brasilândia no Facebook e mostra um vídeo de 51 segundos em que se podem ver dezenas de motoqueiros circulando pelos bairros Jardim Paulistano e Corumbé.
Márcio diz que no começo também não “botava fé na pandemia”, até o dia em que a mãe ligou para ele e disse que seu irmão Marco estava internado no Hospital Geral de Vila Penteado com suspeita de Covid-19. “Fico até arrepiado com a lembrança”, diz. Marco deu entrada no hospital com febre e falta de ar há três semanas. Pouco tempo depois ele foi intubado, e permanece em estado grave, mas estável.
No hospital, Dedé ficou mais de dez horas em observação. Fez diversos exames, entre eles o teste rápido, que deu negativo para Covid-19. Mas desconfiou da reação do médico quando este estava avaliando os exames. “Ele olhou, olhou… Eu sei que ele olhou umas 20 vezes o resultado. Olhava e marcava nos exames. Eu pensei: ‘Vai dar zica pra mim’. Achei que iriam internar, ficar isolado. Não sabia se ia voltar. Ele chamou outra médica e ela olhou de novo. Conversaram bastante entre eles e disseram que eu não estava doente e me mandaram embora urgente.”
Mesmo sem o irmão ter obtido o resultado do teste para Covid-19, Márcio acredita que ele possa estar contaminado e se esforça para adivinhar onde teria contraído o vírus, porque, na maior parte do tempo, Marco estava dentro de casa. “É difícil ele sair. Se ele pegou, foi indo ao mercado ou alguém trouxe pra ele. O cara nem no portão ele ficava.” Há três anos, Marco, que é ex-fumante, teve um começo de infarto. Para Márcio, foi o que expôs o irmão ao vírus.
O motorista Digenaldo de Santana, 45 anos, conhecido na favela da Paz como Dedé, também desconfia que foi contaminado, mesmo com o resultado negativo teste rápido que fez no Hospital Geral de Vila Penteado. Dedé começou a sentir falta de apetite e em seguida teve febre, mas inicialmente evitou ir ao hospital. Medicou-se com antitérmico e tomou chá, porém não melhorou. Com receio de o estado dele se agravar, a esposa e a irmã exigiram que fosse ao hospital, mas Dedé dizia estar com medo de ser contaminado ou ficar internado. “Uns amigos meu pegaram. Teve um que não saiu do hospital ainda. Não queria ficar internado”, conta.
Um dia após os primeiros sintomas surgirem, Dedé tossia bastante e tinha dificuldade para respirar. “Quando eu começava a tossir, parecia que meu pulmão expandia, que estava forçando a costela. Eu era obrigado a tossir com o braço fechado, pressionando a costela para conseguir respirar. Aí não tive como evitar. Mesmo com medo, fui pro hospital.”
Dedé retornou para a comunidade. Recebeu a orientação de que não deveria sair de casa, teria que evitar contato com outras pessoas porque, segundo os médicos, sua imunidade estava muito baixa. No período de 15 dias, relata que teve várias crises respiratórias, febre alta e falta de apetite. “Eu perdi 12 quilos em 15 dias. Achava que não ia aguentar. Eu não morri por sorte. Me salvei!”, comemora.
Na comunidade em que Dedé mora, há três casos suspeitos e um confirmado de coronavírus, este de uma vizinha que reside na mesma viela. A realidade local se assemelha ao que vem acontecendo em diversas regiões da cidade: circulação e aglomeração de pessoas. Só que, em vez de em ruas e avenidas, os moradores da favela da Paz transitam nos becos e nas vielas.
É fato que para as pessoas que vivem na comunidade se manterem isoladas é mais difícil. No geral, as casas são pequenas para a quantidade de pessoas. No sábado (25), Maria Pereira, 38 anos, estava sentada em frente de casa enquanto conversava com a irmã e o cunhado. Os dois sobrinhos andavam de bicicleta acompanhados de pelo menos outros cincos adolescentes. O ritmo na travessa era frenético: mercadinho cheio, botecos lotados, grupos de jovens espalhados por diversos pontos. Adolescente fumando narguilé e compartilhando copos de bebidas. Apenas algumas pessoas usavam máscara.
No intuito de orientar a comunidade, o líder da associação de moradores, Francisco Luciano Lima, 48 anos, encomendou uma faixa para colocar na entrada da comunidade e mandou gravar uma vinheta de áudio para deixar passando na sua bike-som, apelidada de Jurubeba. “Eu sei que aqui é mais difícil as pessoas ficarem em casa, por conta de coisas que nem cabe a gente explicar, porque tudo mundo sabe como é a condição da moradia nas favelas, mas vejo que a população, no geral, não está se esforçando. Tenho tentado conscientizar as pessoas para que elas fiquem em casa, assim a pandemia vai parar mais rápido e em breve voltaremos à normalidade, mas ainda não entenderam isso.”