Ideia para um conto borgiano em tempos de pandemia. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 18 de maio de 2020 às 17:29
Ideia para um conto borgiano em tempos de pandemia. Por Gilberto Maringoni. Foto: Reprodução/Facebook

Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor

IDEIA PARA UM CONTO BORGIANO EM TEMPOS DE PANDEMIA
(Na verdade, mais para Black Mirror)

Personagem classe média, em home office, mulher e filhos pequenos, se tranca na dispensa com um laptop para participar de uma série de reuniões durante o dia sem ser importunado.

A primeira prolonga-se além do tempo, ele entra na segunda pelo celular, a primeira termina, ele engata numa terceira enquanto a segunda perde-se numa espiral de relatórios e urgências inadiáveis, não sai para almoçar e nem para ir ao banheiro. A mulher, entretida com os filhos faz jantar para os pequenos, dá banho em cada um e dorme exausta com os dois, na cama.

Dia seguinte acorda tarde, vai até a dispensa, porta trancada, vozes variadas, ela imagina que o conge segue em nova rodada com o pessoal da matriz, ou com a equipe de vendas, cuida da casa, entretém-se com as crianças, faz almoço, janta, limpa cocô até que, oito da noite, decide voltar à dispensa, bate na porta, ouve vozes, busca a cópia da chave, não encontra, tenta arrombar inutilmente, grita, chora esperneia, não consegue chamar ninguém por força do isolamento e passa a noite em claro.

Dorme na manhã do terceiro dia, enquanto as crianças pintam e bordam pela sala, quartos e cozinha. Ninguém se machuca. Resolve chamar o cunhado, desconfia que o marido teve algum treco no meio do trabalho – covid não pode ser, não é tão rápido assim – e caiu em cima do computador. Chega cunhado com um pé de cabra e máscara, arromba a porta e não há ninguém no recinto. Olham por todo lado, ele não podia ter se jogado pela janela basculante – é muito pequena – e ficam sem saber o que fazer.

De repente, do fundo da tela do computador, Zoom ligado, ouvem um fio de voz ao longe:

– Ajuda!! Pelamordedeus! Me tirem daqui, rápido, vai acabar, vai acabar…

Puf! A bateria chega ao fim, a tela escurece, o computador desliga.

Nunca mais volta. Ninguém tem seu login e senha.