"Epidemiologista francês, Didier Raoult, publica estudo científico sobre a eficácia da hidroxicloroquina em pacientes da covid-19."
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— Eduardo Bolsonaro?? (@BolsonaroSP) May 30, 2020
Em questão de alguns dias o último artigo publicado pela revista científica The Lancet sobre a ineficácia da administração da cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19 se traduziram em efeitos políticos e sanitários.
A Organização Mundial da Saúde interrompeu os estudos com essas moléculas. Na França, o Alto Conselho de Saúde Pública recomendou a interrupção dessas prescrições. O estudo, assinado, dentre outros autores, pelo professor da Universidade de Harvard Mandeep Mehra, recebeu críticas.
Falta de transparência nos métodos e cálculos utilizados, assim como em relação a quais são os hospitais de onde vêm os dados de mais de 96.000 pacientes são alguns dos problemas apontados por diversos cientistas na Europa e no mundo.
Christian Funck-Brentano, professor de farmacologia médica na Sorbonne Université, simultaneamente apontou limites do artigo em um comentário publicado pela The Lancet.
Em entrevista ao Diário do Centro do Mundo, ele explica que limites são esses e por que discorda da decisão da OMS. No entanto, ele reforça a certeza do perigo da cloroquina e da hidroxicloroquina para pacientes com Covid-19.
Na visão do chefe do serviço de farmacologia médica do Hospital Pitié-Salpetrière, em Paris, a ciência vive com a Covid-19 um momento grave na França e no mundo com a intrusão da política e da religião. Para Funck-Brentano, o doutor Didier Raoult é o maior responsável. “É muito mais culpado que Bolsonaro ou Trump”, afirma, em referência a milhares de vítimas de possíveis arritmias cardíacas causadas pela cloroquina e seu derivado.
O professor fala da deontologia da ciência, compara o discurso do Dr. Raoult, pregador da cloroquina para o coronavírus, à Idade Média e a ditaduras. E faz um apelo ao bom senso dos chefes de estado brasileiro e americano.
DCM: Em linhas gerais, o que diz seu comentário publicado na revista The Lancet a respeito de um estudo sobre o uso da cloroquina no tratamento da Covid-19?
Christian Funck-Brentano: Pediram para que eu reagisse ao artigo de Mandeep Mehra e colaboradores. E o que o artigo discute justamente é uma ligação entre a alta mortalidade que eles observaram e a existência de uma aumento de arritmias ventriculares.
DCM: Por causa da administração da cloroquina?
Christian: Por causa da administração da cloroquina e da hidroxicloroquina, que são conhecidas há 50 anos, por poder excepcionalmente afetar o ritmo cardíaco, o que chamamos de “torsades de pointe”, um problema no ritmo, que ocorre no contexto da administração do medicamento, alongando a duração da regularização ventricular, que é um parâmetro elétrico do coração, medido no eletrocardiograma pelo “intervalo QT”. Quando o intervalo QT aumenta, tem-se um aumento no risco de arritmia ventricular.
Então a hipótese de que vemos um aumento da mortalidade e vemos um aumento de arritmias, eles fizeram um salto que não se deve fazer, dizer que o aumento da mortalidade foi provocado pelo aumento das arritmias, então pelo risco da toxicidade cardíaca muito conhecida há um bom tempo dos diferentes tratamentos.
No comentário que eu escrevi com o Dr. Joe-Eli Salem, eu apresento o artigo e seus resultados mas explico que não penso, tendo argumentos para dizê-lo, que a discussão deles, ligando a sobremortalidade com o ritmo cardíaco não me parece plausível. Por diversas razões.
Primeiro, eles têm muito mais mortos do que pessoas em que se documentaram arritmias ventriculares. Em seguida, o que se sabe dessas arritmias cardíacas provocadas por medicamentos que alongam o (intervalo) QT, como a cloroquina e hidroxicloroquina, é que quando se administram juntos diversos medicamentos que têm essa propriedade – e os macrólidos fazem isso também, muito pouco -, por exemplo a hidroxicloroquina e azitromicina, amplia-se consideravelmente o risco de “torsade de pointe”.
Eles não veem esse aumento, o risco moderado de mortalidade entre cloroquina e cloroquina mais macrólidos, ou hidroxicloroquina, e hidroxicloroquina mais macrólidos, não é muito diferente, um risco que aumentou mas não significativamente.
DCM: Em relação às medidas políticas que foram adotadas alguns dias depois da publicação do artigo da revista Lancet e do seu comentário na mesma publicação, há uma relação com as mesmas observações que o senhor pôde fazer?
Christian: Não. Eu não sou como Bolsonaro, que fala de medicina sem conhecer nada. Eu não falo de política porque também não conheço nada a respeito. Eu justamente não paro há dias de dizer que é preciso não misturar política e ciência.
As decisões políticas tomadas a partir destes resultados são perturbadoras por questões que não são científicas. A OMS decidiu suspender temporariamente todos os estudos clínicos sobre a hidroxicloroquina. As autoridades francesas fizeram a mesma coisa. Pessoalmente, eu não concordo com esta decisão.
Não cabe a mim concordar ou discordar. Eles é que são responsáveis. Mas por que discordo? Porque os diferentes estudos publicados até agora principalmente sobre a hidroxicloroquina e a cloroquina mostraram resultados ora neutros ora negativos, como o estudo de Mehra sobre a mortalidade. Porém são todos estudos chamados “observacionais”.
Ou seja, são estudos epidemiológicos, nos quais se sabe que há vieses possíveis. Os vieses se dão pelo fato de observarem pacientes e não intervirem sobre eles. Consideraram-se pacientes tratados com hidroxicloroquina, não sabemos por que, e compararam-lhes com pacientes que não eram tratados com hidroxicloroquina, não sabemos por que.
Então, estes estudos observacionais são grandes, trouxeram muitas informações médicas, mas são informativas, não são totalmente conclusivas. Não se pode extrair de estudos observacionais um resultado totalmente sólido.
Quando se avalia um medicamento, a única maneira de avaliar seus efeitos é de fazer um estudo terapêutico randomizado; sorteiam-se pessoas a quem se dá o tratamento e a quem não se dá e o acaso faz com que, sorteando-lhes, tenhamos a mesma quantidade de pessoas com problemas cardíacos no grupo tratado e no grupo não tratado, enquanto nos estudos observacionais, há desequilíbrios, que inclusive Mehra apresentou.
Nos estudos observacionais, há técnicas estatísticas que permitem ajustar dados de modo a limitar erros induzidos por essa heterogeneidade de pacientes a quem se dá ou não o tratamento. Funcionam, mas sem perfeição.
Mehra fez bem seu trabalho, utilizou outras técnicas para verificar que estes ajustes estavam corretos, mas há outros estudos que mostraram resultados neutros – não benéficos, mas tampouco tóxicos, sem sobremortalidade.
Hoje, se queremos continuar testando a hipótese de que cloroquina e hidroxicloroquina servem para alguma coisa, a única maneira de fazê-lo é por meio de estudos clínicos terapêuticos randomizados versus placebo.
Há estudos em curso. Isso é muito mais demorado, então não é lógico interromper estes estudos. A OMS não os parou, ela os suspendeu. Ao contrário, precisamos ter estes estudos para saber se a hidroxicloroquina ou a cloroquina podem ter efeitos benéficos e/ou deletérios.
DCM: É a isso que se refere quando fala em “perturbação política”?
Christian: O que eu chamo de “perturbação política” é, por razões que me fogem, políticos, cujo ofício não é esse, se apropriaram da “causa” da hidroxicloroquina enquanto, na ciência, precisamos absolutamente não ter opinião sobre o resultado de um estudo.
Por razões que me fogem, querem defender um medicamento – o que é um direito deles -, mas não cabe a eles defender um medicamento. É à ciência que cabe dizer que os estudos mostram ou não. No mundo inteiro, inclusive no Brasil, estudos são feitos para colocar um medicamento no mercado.
As agências governamentais solicitam aos laboratórios que desenvolvem moléculas reler esses famosos estudos randomizados versus placebo, ou contra um tratamento de referência, mas é sempre comparativo, por sorteio, de modo a avaliar o efeito do tratamento. Os estudos observacionais não permitem fazer isso.
Eles permitem ter informações, mas quando elas são sujeitas a vieses, erros potenciais, ajustes a técnicas estatísticas, que podem conter defeitos, não se pode tirar conclusões absolutamente formais.
DCM: Ao mesmo tempo, a França também é atravessada por esse cruzamento entre política e ciência. Primeiro, diversos partidos políticos, Emmanuel Macron indo visitar o Dr. Raoult. Certo tempo depois, somos surpreendidos pelas últimas medidas. Somos confrontados uma espécie de confusão?
Christian: Totalmente. Você pode usar completamente a palavra confusão. Há uma confusão de gêneros, porque os políticos têm a imprensa e os eleitores diante deles. Eles se posicionam sobre um conjunto de princípios, que satisfazem objetivos políticos.
Quando avaliamos um medicamento, estamos na neutralidade. Somos como juízes, apreciamos um caso sem ter a priori sobre o resultado do estudo. Para os cientistas, não nos cabe defender a hidroxicloroquina ou ir contra a hidroxicloroquina.
O que queremos é avaliar um medicamento com os instrumentos de que dispomos para fazê-lo de modo a obter uma medida objetiva do efeito desse medicamento.
Didier Raoult faz muito mal à ciência. Ele é professor de medicina universitária, então é totalmente paradoxal, para não dizer inadmissível que ele possa tomar uma posição do tipo “eu sei que funciona, então não preciso provar”.
Por 3 mil anos, funcionamos assim na medicina. Os grandes professores, as autoridades ou a igreja, ou o chefe de Estado, ditaduras diziam “isso funciona” e todo mundo devia concordar. Desde pouco tempo, 1850 aproximadamente, desenvolvemos métodos experimentais permitindo avaliar medicamentos de maneira neutra.
Eu vou me colocar na posição de avaliador, com a mesma chance de demonstrar uma verdade e seu contrário. Então Raoult, para mim, é muito mais culpado que Bolsonaro ou Trump, porque Bolsonaro e Trump são políticos, não têm nenhuma competência – inclusive eles o dizem – em matéria de avaliação sanitária.
É como se eu, de repente, fizesse um discurso político. Eu não tenho propriedade para falar de política, ou de economia. E eles não têm legitimidade para falar de avaliação de um medicamento.
DCM: O senhor citou justamente um cientista cujas posições são instrumentalizadas por políticos. Didier Raoult disse que viu com os próprios olhos a eficácia da cloroquina e que, portanto, não precisava de mais nada para prová-lo. Esse tipo de argumento reflete um estado são na ciência francesa?
Christian: Absolutamente não. Eu abordei isso numa entrevista à BFMTV. Dizer que observou alguma coisa, que deu um remédio a um doente e que ele se curou não é nem um pouco confiável. A experiência sobre um doente não é confiável.
E o argumento dele de que observou 3 mil pacientes não prova absolutamente nada. O que eu expliquei na televisão foi que é preciso não confundir religião e ciência.
Karl Popper era um filósofo da ciência, brilhante. Eu sempre o ensino aos meus estudantes na universidade no primeiro ano de medicina. Ele explicou que podemos definir a ciência como fatos que são refutáveis e experimentais, pode-se provar hipóteses, pode-se inclusive falsificar dados. Em teologia, não se pode fazer isso.
O exemplo que eu dou, que é um pouco provocador, é que não posso provar a existência de deus. Eu tampouco posso provar a ausência da existência de deus. Se se crê ou não, é uma questão pessoal, mas não é ciência, é a crença, a teologia.
Por outro lado, eu posso provar os efeitos, benéficos ou neutros, da hidroxicloroquina, testando-a num plano experimental. Então o que diz Raoult, do tipo “eu observei pacientes”, não tem nenhum significado.
Pode ser que seus pacientes não estavam doentes, ou tão doentes quanto os que havia em Paris ou Bordeaux. O que ele observa é interessante, mas não é explorável para tirar uma conclusão.
DCM: É uma tragédia em relação às consequências que essa perspectiva do Dr. Raoult pode provocar à saúde de pessoas na França e no exterior, considerando que há países como o Brasil, onde o presidente prega o tratamento da cloroquina e recusa toda contestação?
Christian: Sim, é trágico. Por diversas razões. Fazendo pessoas angustiadas, que realmente gostariam de ter um tratamento que funciona, acreditarem… Quando uma autoridade médica diz “esse tratamento funciona, eu não preciso provar”, as pessoas acreditam pois é uma palavra que tem peso.
Políticos como Trump e Bolsonaro são influenciados por esse tipo de mensagem. É trágico porque, fazendo isso, expõe-se uma parte considerável da população aos efeitos indesejáveis desse medicamento. Eles não são muito frequentes. Mas eles são potencialmente mortais.
Quando eu digo que nos dados de Mehra a hipótese de que a sobremortalidade é causada pela arritmia ventricular não se sustenta, é preciso não negligenciar o fato de que há pacientes a quem damos cloroquina e hidroxicloroquina e têm acidentes.
Publicamos em paralelo (à publicação na revista The Lancet) na (revista) Circulation sobre uma análise da base de farmacovigilância mundial da OMS, em 50 anos encontramos um excesso de mortalidade por problemas cardíacos com essas moléculas, com efetivos pequenos. A página de dados é gigantesca, mas trabalhamos com 250/300 casos declarados. É muito raro. Talvez com pacientes de Covid-19 é muito mais frequente. Não se sabe. Mas considerando a massa de pessoas expostas à pandemia, vou dar um exemplo.
Se você trata 10 milhões de pessoas com hidroxicloroquina, e você tem 1 caso para 10 mil pessoas em que haverá uma arritmia cardíaca, então você terá mil mortos. Matar mil pessoas com um medicamento que não se tem uma prova de que ele é útil é trágico.
Um outro elemento é que esses medicamentos têm uma utilidade e são prescritos em indicações cujo benefício foi demonstrado. Na França, houve pacientes que normalmente devem usar a hidroxicloroquina para o lúpus, que não têm medicamento suficiente porque o estoque foi consumido para tratar a Covid-19 sem haver a prova de que esse tratamento é eficaz.
Então é absolutamente trágico induzir massas de população a se expor a um medicamento inútil, ou até mesmo perigoso, inútil eu não sei, ninguém sabe, não foram feitos estudos randomizados, perigosos nós temos certeza. Há centros de farmacovigilância que coletam todos os acidentes que lhe são declarados. Não é a maioria. Mas é certificado que houve pacientes que tomaram cloroquina e que morreram de arritmia cardíaca por tomá-la.
DCM: O senhor teria outras considerações a fazer?
Christian: É preciso muita atenção a Karl Popper. Não se pode misturar religião e ciência. Cada vez que se fez isso na história do mundo, enganou-se. Isso remonta a Galileu, Copérnico, a Terra é plana, tudo que se contou sem demonstrar, e do âmbito religioso.
Quando se tem responsabilidade, eu sei que Bolsonaro e Trump o são, é necessário que eles se atenham à ciência quando eles falam de um assunto científico. Que se calem ou que lembrem que não é uma questão de acreditar que a hidroxicloroquina funciona. Temos o dever de verificar que há um efeito benéfico e não efeitos deletérios.