A privatização da água e a explosão de protestos no Chile. Por Sandoval Alves Rocha

Atualizado em 25 de junho de 2020 às 10:45

PUBLICADO NO AMAZONAS ATUAL

POR SANDOVAL ALVES ROCHA

A primeira experiência latino-americana do capitalismo neoliberal foi implantada no Chile em 1973, a partir da instalação de uma ditadura militar (1973-1990). Apoiado pelos Estados Unidos da América, em 11 de setembro de 1973, um golpe de Estado coordenado pelas Forças Armadas, terminou com o mandato do presidente Salvador Allende. Tropas do exército e aviões da Força Aérea atacaram o Palácio de La Moneda, a sede de governo, onde Allende supostamente teria cometido suicídio antes que as tropas invadissem o Palácio.

Após derrubar o governo democrático de Allende, de esquerda, os membros da Junta de Governo iniciaram o processo de estabelecimento do seu sistema de governo. Diante de tal situação, os grupos de esquerda começaram a sofrer repressão exercida pelo novo governo. A maioria dos líderes do governo da Unidade Popular e outros líderes da esquerda foram presos e transferidos a centros de reclusão.

Os protestos ocorridos do Chile, deflagrados a partir do dia 18 de outubro, traz à tona a indignação popular contra o modelo econômico implantado pelo regime ditatorial, baseado na liberalização do mercado, na privatização de empresas públicas, na apropriação privada dos recursos naturais e no recolhimento do Estado perante as suas responsabilidades sociais.

O setor da água e saneamento foi afetado de forma mais incisiva por esta política econômica, na década de 1980. Com a entrada em vigência da nova Constituição, se estabeleceu no Chile leis traumáticas que transferiram as empresas estatais para a iniciativa privada. Em 29 de outubro de 1981, o Decreto-lei nº 1.122 outorgou o direito de a iniciativa privada se apoderar das águas de forma gratuita e perpétua, dando-lhe a faculdade de usá-las como qualquer outro bem privado.

De forma inédita, o Código de Águas (1981) do Chile separou os direitos da água do domínio da terra, retirando das comunidades rurais o controle das águas situadas nos seus próprios territórios. O Código de Águas faculta o direito de propriedade da água sem nenhuma exigência, sendo necessária somente uma petição. Uma vez outorgados os direitos das águas a particulares, o Estado já não intervém, deixando a estes particulares toda a transação, sendo possível a comercialização da água como qualquer outra mercadoria.

Os processos de privatização da água no Chile ocorreram por decisões pouco democráticas. Além da água, também os serviços sanitários, como coleta e tratamento de esgotos e gestão de limpeza pública, passaram por este processo autoritário. As empresas de água potável foram transferidas pelo Estado às empresas privadas multinacionais quase em sua totalidade, seguindo as políticas impostas pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e firmando Tratados de Livre Comercio. Para este processo não se consultou a população e se houve consulta não influenciaram as decisões finais.

A empresa estatal de abastecimento, que havia sido criada em 1943, foi vendida para a multinacional Endesa Espanhola, em 1990. A Carta da Água, escrita pelo bispo católico Luis Infanti de la Mora, ao relatar este processo salienta que a privatização acarretou uma significativa elevação do preço da água em todo o país (Carta del Água, setembro de 2008).

No Chile foi adotada uma das versões mais ortodoxas das políticas neoliberais. Segundo a Carta del Agua, a privatização contribuiu enormemente para a expansão do mercado da água, o hidronegócio. A atribuição de valor econômico à água, como qualquer outro produto, a submeteu aos processos de mercantilização, fomentando a especulação e a extinção do direito à água.

A gestão das empresas privadas, além de elevar significativamente as tarifas para os usuários, também tem reduzido o número de trabalhadores no setor. As instituições do Estado encarregadas de desenvolver a política sobre os recursos hídricos apresentam uma significativa dispersão de responsabilidades e uma escassa capacidade de controle e fiscalização, também por ter um número reduzido de funcionários.

Com o retorno da democracia chilena, a gestão da água no Chile se mantém nas mãos privadas, com pleno apoio do Estado e com escassíssima participação da população nas decisões. Trata-se das incrustações ditatoriais na imatura democracia chilena.

Como em outros campos do mercado, também o hidronegocio favoreceu a criação de monopólios e alianças com as empresas multinacionais impulsionadas pelos organismos transnacionais que promovem a política global em beneficio dos países mais ricos: o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Aysén, zona situada na Patagônia, rica em recursos hídricos, é chamada de “Região Vendida”, referindo-se também à posse privada da água, este bem natural insubstituível para a vida. Os monopólios afetam seriamente o desenvolvimento local e regional e seus projetos provocam fortes impactos negativos sobre os bens naturais, sobre as pessoas e comunidades, sobre a biodiversidade e os ecossistemas.

A Carta del Agua assegura que o capitalismo não tem ética porque se assenhora dos bens e até das pessoas. Não tem uma relação de comunhão e de solidariedade, mas de domínio, de possessão, de poder, pois o mais importante é o capital, o lucro e o poder econômico. Ele compra a vida, a manipula, a usa e dela abusa, sobretudo, da natureza, grande vítima deste sistema. Segunda a Carta del Agua, o uso e abuso depredador da natureza desemboca necessariamente no questionamento do sistema neoliberal.

A atual explosão de protestos no país, portanto, trás à tona a indignação sentida pelo povo chileno durante décadas de domínio neoliberal. Mediante uma política econômica autoritária, a privatização da água no país deixou toda a população à mercê da sede de lucros de empresas multinacionais, que se apropriaram de um bem comum e insubstituível. Com os protestos, a população dá um basta ao autoritarismo neoliberal, que tudo transforma em mercadoria em detrimento das necessidades das comunidades.


*Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG). Membro da Companhia de Jesus (Jesuíta), atualmente é professor da Unisinos e colabora no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), sediado em Manaus/AM.