Bolsonaro declarou R$ 50 mil em obras no ano em que foi citado por receber R$ 50 mil na “Lista de Furnas”

Atualizado em 25 de junho de 2020 às 23:48
O PRESIDENTE JAIR BOLSONARO (FOTO: EVARISTO SÁ/AFP)

Publicado originalmente pela Agência Sportlight:

Por Lúcio de Castro

Duas movimentações no mesmo valor chamam atenção na declaração do imposto de renda de Jair Bolsonaro em 2002. A quantia é igual a que foi atribuída a ele na conhecida “Lista de Furnas” naquele ano.

Na ocasião, o então deputado federal apontou para a Receita Federal ter gasto R$ 50 mil em reformas de dois distintos imóveis. O mesmo valor e ano em ambas: R$ 25 mil no apartamento na rua Visconde de Niteroi, Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro e outros R$ 25 mil na casa de Angra dos Reis.

Esses R$ 50 mil que estão na prestação de contas do candidato na Justiça Eleitoral em 2002 e aparecem como empregados nas citadas obras, corrigidos pelo IGMP-M equivalem a R$ 180.927,44 atuais.

As duas obras simultâneas com preço idêntico chamam atenção mais ainda quando surge uma terceira coincidência. Com igual valor: também R$ 50 mil são atribuídos a Jair Bolsonaro no mesmo período na famosa e controversa “Lista de Furnas”. Na relação, o atual presidente aparece como beneficiário de exatos R$ 50 mil para a campanha eleitoral de 2002 vindos de uma caixinha alimentada por corrupção na estatal. Bolsonaro nega ter recebido tal quantia.

2002: R$ 25 mil declarados no Imposto de Renda como “obra em casa de Angra dos Reis”:

2002: R$ 25 mil declarados no Imposto de Renda como “obra em apartamento na rua Visconde de Itaboraí”:

2002: Bolsonaro é citado por receber R$ 50 mil na “Lista de Furnas”

Obras e reformas de imóveis são apontados como clássicos indícios na literatura sobre lavagem de capital e entre os especialistas, caso não exista comprovação sobre a origem dos recursos. Nas chamadas fases que compõe o processo de lavagem que encontram senso comum na bibliografia do tema estão a conversão, a dissimulação e por fim a integração do capital a ser lavado.

Experiente profissional consultado pela reportagem, perguntado de maneira geral e não específica sobre algum caso, afirmou que é comum a “simulação por meio de notas e recibos falsos de reformas e benfeitorias no imóvel que possam valorizá-los, promovendo assim a reinserção desse capital”.

Um outro profissional tarimbado da área ouvido pela reportagem, de renome mundial no tema e protagonismo nas operações de lavagem de dinheiro em episódios de grande impacto recentemente no Brasil, também questionado sem saber quem era o personagem em questão e tendo apenas se debruçado sobre o caso genericamente, afirma que a descrição da operação não deixa dúvidas de indícios:
“Na minha opinião, com certeza é um indício de lavagem, desde que não haja comprovação de onde saiu o valor. Lá na frente, quando se vende o imóvel, o valor estaria inserido no bem e essa pessoa receberia o dinheiro limpo, oriundo da venda do imóvel. Não é uma lavagem muito sofisticada pois tem uma ponta solta: a origem do recurso gasto na reforma. Mas com certeza pode se constituir lavagem. Até porque quase toda lavagem deixa uma ponta solta no esquema”, diz.

Para tentar entender a origem dos recursos e saber sobre a comprovação dos gastos, a Agência Sportlight de Jornalismo analisou as declarações de imposto de renda existentes na Justiça Eleitoral a cada eleição. E procurou ouvir o presidente, através da assessoria de imprensa do Palácio do Planalto, que não respondeu.

Os dois imóveis citados estavam na declaração de renda do então deputado federal Jair Bolsonaro no ano de 2002, quando aparece a indicação dos gastos com obras. Misteriosamente e jamais esclarecido, na declaração de renda na eleição seguinte (2006) entregue para a justiça eleitoral, os imóveis que constam em 2002 não aparecem mais. Em 2010, Bolsonaro volta a declarar imóveis. A casa em Angra ainda consta mas o apartamento da Tijuca não está mais entre os bens.

Outro dado chama atenção ao se verificar a declaração de Jair Bolsonaro. Em 2002 seu imposto de renda citava R$ 123.341,23 em 6 contas (duas poupanças, duas contas correntes e duas aplicações, todas no Banco do Brasil). Um gasto de R$ 50 mil representaria 40,54% de seu capital empregado em reformas.

O nome de Jair Bolsonaro na “Lista de Furnas” e a coincidência de valor com a mesma quantia de R$ 50 mil em reformas de imóveis acende a luz de novo para um episódio que parece ter sido estranhamente esquecido e cercado de silêncio.

A chamada “Lista de Furnas” é como foi batizado um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro onde Furnas Centrais Elétricas é a fonte de arrecadação. E teria movimentado milhões desviados da estatal a partir de 2000 até 2005. O coração da quadrilha seria Dimas Toledo, indicado por Aécio Neves para a diretoria de engenharia da empresa ainda na presidência de Fernando Henrique Cardoso.

A finalidade inicial era financiar a campanha de Aécio Neves para a presidência da câmara dos deputados na campanha que começou em 2000 e culminou com a vitória em 14 de fevereiro de 2001 para comandar o parlamento. A propina teria proporcionado a compra de boa parte dos 283 votos que selaram a vitória do político mineiro.

Já montado e funcionando a pleno vapor, o esquema de Furnas teria seguido estruturado depois do pleito interno do congresso. A partir daí então tendo como fim alimentar a caixa de alguns deputados federais, essencialmente de partidos conservadores, para as eleições de 2002 e indo até 2005. No entanto, paralela ao “Mensalão”, a denúncia não encontrou o mesmo eco e interesse das autoridades e grande imprensa em seguir investigada, apesar das vultosas quantias envolvidas.

Uma lista com o nome de 156 políticos beneficiários dessa “caixinha”, daí o nome “Lista de Furnas”, foi entregue pelo lobista Nilton Monteiro, próximo a Dimas Toledo, para a Polícia Federal em 6 de maio de 2006. A lista entregue por Nilton Monteiro tem a assinatura de Dimas Toledo e a data de 30 de novembro de 2002.

Perícias foram contratadas por políticos para desmentir a veracidade da lista, uma CPMI no congresso defendeu seus pares das acusações, decretando a falsidade dos documentos mas em 16 de junho de 2006, reportagem de Rubens Valente, na Folha de São Paulo, revela que a Polícia Federal atestou a veracidade da “Lista de Furnas”.

Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo PPB, aparecia como beneficiário de R$ 50 mil reais na lista. O atual presidente sempre negou. Na campanha presidencial de 2018, o tema voltou e o então candidato afirmou que era coisa da oposição. “A Polícia Federal anexou relatório ao processo judicial sobre o caso em que demonstra como o estelionatário Nilton Monteiro confeccionou a falsa lista de Furnas, incluindo apenas deputados da oposição visando fazer um contrapeso ao escândalo do mensalão de 2005. Seria a salvação de Lula e mensaleiros. A Polícia Federal reconheceu a autenticidade da assinatura de Nilton Monteiro na tal lista de Furnas mas não seu conteúdo”, afirmou Bolsonaro.

Abafada e sem ir adiante em maiores investigações apesar do teor, a lista teve confirmação em alguns outros episódios. Que batiam com os dados da relação apresentada por Nilton Monteiro. Um deles é um depoimento de Roberto Jefferson para a Polícia Federal em 1º de fevereiro de 2006, onde reconhece que recebeu, como deputado federal pelo PTB, a quantia de R$ 75 mil, exatamente o valor que aparece ligado ao seu nome na relação. Jefferson hoje é um dos principais aliados de Jair Bolsonaro.

Mais dois episódios atestam o esquema de Furnas: as delações premiadas de Marcos Valério, lobista mineiro, que descreve como funcionava o mecanismo inicialmente formado para bancar a eleição de Aécio Neves na câmara e depois nas campanhas eleitorais e ainda a delação de Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, que confirma o repasse a um conjunto de políticos.

A “Lista de Furnas” na delação de Marcos Valério:

Outro lado:
A reportagem tentou ouvir o presidente Jair Bolsonaro sobre os temas abordados através da Secretaria de Comunicação (Secom) mas não obteve resposta.