Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor
POR LUIS FELIPE MIGUEL, cientista político
O infame artigo n’O Globo sobre “perdoar o PT” é um dos acontecimentos mais significativos da conjuntura política.
O sentido do golpe de 2016 foi silenciar de vez o campo popular na política brasileira, a fim de que o desmonte do Estado e dos direitos pudesse avançar com rapidez e sem contratempos.
Mesmo uma política de moderação extrema, ciosa dos estreitos limites da transformação social no Brasil, como a do lulismo, era considerada algo a ser extirpado.
Para alcançar esse objetivo, a Constituição foi rasgada várias vezes. Uma presidente legítima foi derrubada. Os abusos da Lava Jato foram aplaudidos. Lula foi condenado e preso em julgamentos farsescos e ao arrepio da lei. A violência política se agigantou. Os militares foram trazidos de novo para o proscênio da política nacional.
Quando chegaram as eleições de 2018, os mesmos que articularam o golpe preferiram apoiar um criminoso intelectualmente incapaz a abrir diálogo com um liberal cauteloso como Fernando Haddad.
Uma aposta de risco. Se entregou muito do que prometera, com as medidas antipovo e antinação de Guedes, Bolsonaro por outro lado mostrou-se danoso, seja por sua incompetência administrativa e intemperança verbal, seja por privilegiar os interesses paroquiais (ou devo dizer “miliciais”?) aos quais está associado.
Prisioneiro do discurso superficialmente anti-sistêmico que o projetou, de uma dinâmica de conflito e também de sua própria masculinidade frágil, que o faz ver qualquer compromisso como humilhação, em muitas áreas Bolsonaro mostrou-se disfuncional para grupos que o apoiavam.
A Globo é um deles. A rede exige ser chamada a participar da partilha do poder – e, portanto, zela pela manutenção de seus próprios recursos de pressão diante dos governantes. Já Bolsonaro se sente mais confortável com parceiros menos demandantes.
Estranhou-se com a Globo não apenas criticando sua programação, destratando seus jornalistas ou repetindo bravatas sobre não renovar a concessão. Ele diminuiu sua participação na verba publicitária do governo; agiu no sentido de beneficiar suas concorrentes, recriando sorteios na TV; atingiu uma fonte de receita importantíssima, no caso da transmissão dos jogos de futebol.
E a Globo sente que não é mais – se é que um dia de fato foi – aquele poder supremo que faz e desfaz presidentes no Brasil. Já havia sido derrotada por Temer. E agora não consegue enquadrar Bolsonaro.
Daí o aceno ao PT. O autor é um porta-voz autorizado do império dos Marinho; não é insensato ler o texto como sendo uma posição oficiosa da empresa.
Não vou me estender sobre os absurdos do artigo. Todas as arbitrariedades cometidas nos últimos anos (o golpe contra Dilma, o lawfare contra Lula) são apresentadas como justas punições aos “malfeitos” petistas. O perdão do PT é condicionado ao abandono, pelo partido, de bandeiras abominadas, como democratização da mídia e participação popular.
As respostas dos petistas ao artigo foram, como era de se esperar, de indignação. Mas tendo a crer que não foi para eles que o artigo foi escrito – foi para os outros setores da direita interessada em parar Bolsonaro.
Eles sabem – como Ascânio Seleme escreveu – que não é possível alcançar esse objetivo sem o apoio militante daqueles que estão à esquerda do centro.
Tentaram, em primeiro lugar, obter esse apoio sem abrir qualquer brecha para que o campo popular tivesse voz. Era a estratégia das “frentes amplas”, em que cabia à esquerda nada mais do que abraçar FHC, Temer e Huck e assinar manifestos em defesa de valores inefáveis.
Seduziu muita gente, dentro do próprio PT e também do PSOL. Mas a oposição enérgica de Lula freou o entusiasmo. Essa oposição, aliada ao fato de que muitos à direita deixaram transparecer que seu objetivo na “frente ampla” era negociar em melhores condições uma acomodação com Bolsonaro, desinflou estas iniciativas, que no momento parecem ter caído numa desmoralização sem volta.
Por isso, O Globo propõe dar um passo à frente. Ele propõe que se aceite, hoje, aquilo com que Lula acenou tantas vezes depois do golpe, quando se lançou candidato, e que reiterou ao colocar Haddad como substituto: uma repactuação que readmita a centro-esquerda como participante do jogo político, pagando o preço da aceitação da maior parte dos retrocessos dos últimos anos.
Não acho que seja uma boa saída. Mas o fato é que o principal conglomerado da imprensa burguesa está propondo, para seu campo, essa alternativa que, até há pouco, era alvo de anátema. Essa é uma mudança importante na conjuntura.