Patrícia Campos Mello revela detalhes da engrenagem de ódio que ajudou a eleger Bolsonaro

Atualizado em 5 de agosto de 2020 às 8:44
A jornalista Patrícia Campos Mello

PUBLICADO NA REDE BRASIL ATUAL

Sabedora do que significa ser alvo de ataques bolsonaristas, a jornalista Patrícia Campos Mello registrou em livro tudo o que sabe sobre o gabinete do ódio. Ou mais, como define: A Máquina do Ódio, título da obra lançada pela Companhia das Letras. Em entrevista a Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, do canal Tutaméia, no YouTube, Patrícia Campos Mello revela muito do que descobriu em suas premiadas reportagens na Folha de S.Paulo. E também na produção do livro que começou a escrever em maio do ano passado. “Não tinha nada de história pessoal, a princípio. Era meio uma comparação mesmo entre políticos populistas de direita usando campanha de desinformação na Índia, nos Estados Unidos e no Brasil. E que ia ser baseado nas minhas experiências nas coberturas de eleições nesses países”, relata.

Tudo mudou depois de uma reportagem publicada dias antes do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, no Brasil. “Não sou repórter de política, essa não é minha praia. Mas como a gente faz as forças-tarefas nas eleições, eu tava ajudando na cobertura e tinham saído várias matérias sobre o uso de WhatsApp, de grupos no WhatsApp. Resolvi tentar ir atrás de ver quem estava pagando (os disparos das mensagens)”, lembra.

Durante cerca de um mês, a repórter conversou com marqueteiros, clientes, ex-funcionários de agência de marketing. “E aí o que eu tinha era que os caras estavam todos informados de que eles não podiam mais fazer nenhum serviço de disparos em massa porque eles tinham recebido mega encomenda de disparos para a semana anterior ao segundo turno. Disparos contra o PT, pagos por empresas. A matéria era isso.”

Repercussão virou violência

Patrícia não achou que a reportagem teria tanta repercussão. Mas teve. E virou uma série sobre o assunto. “É bom a gente lembrar que, na época, disparo em massa não era ilegal. Só era ilegal se você não declarasse, se tivesse alguém pagando. Não podia empresa (colocar dinheiro em campanha eleitoral) desde 2016. E não podia ser campanha negativa nem fake news”, observa a jornalista. Mas foi exatamente o que fizeram Bolsonaro e seus apoiadores.

Depois disso, todas as matérias que ela fez passaram a ser seguidas de algum tipo de ataque, de fake news. “Por exemplo, tinha uma foto de uma mulher abraçada com o Haddad dizendo que era eu. Obviamente não era eu, dava para ver na foto. Tinha outra falando que eu tinha sido condenada a pagar uma indenização para o Bolsonaro. E tinha ataques mais esquisitos. Eles ligavam no meu celular, falavam do meu filho.”

A autora de A Máquina do Ódio voltou à sua rotina de cobertura de política externa, inclusive viagens do então já eleito presidente Bolsonaro. “Eu estava escrevendo o livro ali, no meu ritmo, cobri uma última viagem do Bolsonaro para a Índia, no fim de janeiro, e aí rolou todo aquele episódio da CPI da testemunha que mentiu etc.”

Patrícia refere-se ao depoimento de Hans River do Rio Nascimento, que trabalhou para a empresa de disparos Yacows nas eleições. Na Câmara, ele declarou que a jornalista teria se insinuado sexualmente com o objetivo de obter informações.

Alvo na testa

“Aí, meio que ficou inevitável eu colocar isso no livro, porque isso faz parte dessa estratégia. Se por um lado você está usando rede social para eliminar o filtro da imprensa profissional, se comunicar direto, manipular informação, por outro lado você tem que desacreditar os jornalistas especificamente. Eu acho que isso que é diferente. Não que outros governos não tivessem hostilidade em relação à imprensa. Tinham ‘super’. Só que era muito menos personalizado. Era muito assim: a grande mídia é parte da imprensa golpista. Não era assim, falar sobre fulano, expor a família. Então, me incluí (no livro) e falei de vários episódios, com mulheres principalmente. E aí acelerou. Tirei um mês de licença e dei uma corrida. Mas eu já tinha três quartos do livro escrito.”

Para Patrícia, os jornalistas, no Brasil de Bolsonaro, têm um alvo na testa. “As pessoas têm essa ideia de que o gabinete do ódio [do presidente Bolsonaro] faz tudo. Não acho que é ‘o’ gabinete do ódio, acho que é uma máquina do ódio, porque é sempre um ecossistema. São os caras, assessores do Bolsonaro, mais os blogs de direita, mais os legisladores, mais o próprio Bolsonaro, mais pessoas de carne e osso. Esse ecossistema é uma máquina do ódio.”

Esse sistema, que conta com a “mídia profissional amigável”, assassina reputações de qualquer pessoa que ameace a sua narrativa. “Felipe Neto, jornalistas… para você manter esse controle da sua narrativa pelas redes sociais, pela comunicação direta, você tem de descredibilizar a mídia e qualquer oposição que seja uma ameaça.”

Na Justiça

Patrícia Campos Mello acionou na Justiça o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Assim como, à época, processou a testemunha que mentiu na CPI das Fake News, e Allan dos Santos, o blogueiro de direita que difundiu mentira incitando as pessoas a fazerem memes. Também o presidente Jair Bolsonaro, que fez um trocadilho ofensivo (falar que a jornalista queria “dar o furo”) e elevou o nível de agressões contra a repórter.

“Obviamente fiquei muito nervosa com a mentira, mas ao mesmo tempo me deu uma tranquilidade interna. Porque eu tinha tudo gravado, registrado. A gente fez uma matéria respondendo com todas as informações e pontuando as mentiras. Só que aí é internet”, observa. “Ele falou aquilo e cinco minutos depois o Eduardo Bolsonaro fez um vídeo e tuitou com vários deputados bolsonaristas. Aí isso foi reverberando. Depois Eduardo Bolsonaro foi no plenário da Câmara e falou também. Começou aquela avalanche de meme pornográfico, vídeo pornográfico, coisas inacreditáveis. Uma semana depois, o presidente Bolsonaro puxou esse assunto e fez aquela piada com conotação sexual do nada. Piorou. Comecei a receber mais mensagens, mais horrorosas”, diz, inclusive ameaças de estupro. Era a máquina do ódio.

“Esse processo está correndo, as coisas demoram. Não tenho nenhuma expectativa, mas não pode tudo, gente, não é assim”, diz. “Todos esses memes pornográficos estão aí para sempre. Meu filho um dia ou qualquer pessoa pode acessar essa porcaria.”

Sumindo com HDs

Depois dessas matérias, a oposição entrou no Tribunal Superior Eleitoral pedindo a impugnação da chapa de Bolsonaro-Mourão na eleição. No livro A Máquina do Ódio, a jornalista lembra que o tribunal não ouviu os repórteres, não ouviu os donos de agências e sequer ouviu a empresa disparadora das mensagens por WhatsApp. “Parecia que havia no TSE uma vontade de enterrar a história toda.”

Na época, lembra, houve um pedido dos advogados de quem moveu a ação para que fosse feita busca e apreensão nas agências e nada disso aconteceu. “Tanto que eu tinha as minhas fontes dizendo que os caras estavam sumindo com todos os HDs. É óbvio.”

Ela relata, ainda, que tentou se encontrar com o delegado da Polícia Federal que estava investigando o caso para passar o que tinha apurado. “Liguei umas quatro vezes, mandei e-mail e nunca acontecia.”

Patrícia dá uma série de outros exemplos que colocam em dúvida a seriedade das investigações. Apesar disso, considera que coisas importantes aconteceram, como o reconhecimento de o whatsapp foi usado de maneira irregular na eleição brasileira, e de forma muito grande, e a proibição de disparo de mensagens em massa, de qualquer tipo.

E ressalta: reabriram por exemplo a fase de produção de provas no TSE. “No momento estão fazendo tudo que deveriam ter começado a fazer em 2018”, diz. “Nas matérias apresentamos vários indícios que poderiam ter sido investigados mais rapidamente e eles só estão sendo investigados de um tempo para cá”, afirma ao ser perguntada sobre se não deveria ter sido suspensa a diplomação da chapa de Bolsonaro.

Máquina de ódio e de mentiras

Em A Máquina do Ódio, Patrícia cita pesquisa que diz que 71% das pessoas têm como fonte primeira de informação os grupos de WhatsApp. “Não existe um estudo quantitativo que mostre que uma campanha de desinformação consegue mudar um voto, isso ninguém quantificou. O que a gente sabe é que esse tipo de campanha de desinformação promove uma erosão à democracia. É um tipo de campanha que promove um tipo de informação que beneficia um tipo de candidato, que é o candidato extremista.”

Eleonora lembrou reportagem do Fantástico, da Rede Globo, no último domingo (2), denunciando que posts com mentiras nas redes sociais foram feitos por páginas administradas por assessores da família Bolsonaro. “Dinheiro público está sendo usado para fabricar mentiras em massa”, ressaltou Eleonora. “Isso é um funcionário público, e talvez esteja usando o seu tempo pago com dinheiro do contribuinte para fazer isso”, concorda Patricia. “A PGR (Procuradoria-Geral da República) tem indicações de que alguns deputados bolsonaristas usavam dinheiro da cota parlamentar para pagar uma agência de marketing que fazia campanha a favor dos atos antidemocráticos. É literalmente dinheiro do contribuinte para promover atos contra o Congresso, contra a mídia. São várias coisas que estão convergindo nesse momento.”

Viralizar informação

Patrícia lamenta o fato de não se saber ainda como viralizar informação correta para servir de arma à altura contra as fake news. “É necessário algum tipo de legislação, porque hoje em dia as plataformas têm zero responsabilidade. Mas é muito perigoso: que tipo de legislação? Você pode acabar com uma legislação que nem da Malásia, do Vietnã, que vai criminalizar a tia do zap ou o jornalista”, avalia.

“Por outro lado, também não pode se apoiar no discurso das plataformas para não fazer nada. E falar no mercado, que elas vão se autorregular. Também não funciona. Acho que alguma legislação vai ter, alguma responsabilização. E a gente vai continuar fazendo nosso trabalho como imprensa profissional. Todos nós tentando viralizar a notícia certa. Não tem muito mais que a gente possa fazer.”

Ela acredita que muita coisa se desvende diante de uma questão de vida ou morte, como uma pandemia, em que as pessoas estão morrendo porque o governante é incompetente. “Mostra uma limitação de campanha de desinformação e de manipulação de discurso.”