PUBLICADO NO O CARAÍBA
POR SYLVIA DEBOSSAN MORETZSOHN
Aconteceu num táxi, em Lisboa. Eu estava com uma amiga portuguesa e ela, como de hábito, puxou conversa com o motorista, mas começou a se irritar com as críticas dele ao governo e, mais ainda, com os elogios a Salazar. Era filho de um retornado e não se conformava com as consequências da derrota no Ultramar. Em dado momento, declarou que odiava o Mário Soares. Se pudesse, matava-o.
Mário Soares, bem a propósito, tinha morrido poucos meses antes, mas o homem continuava a fantasiar seu desejo de vingança e a saborear um protagonismo irrealizável.
Foi em 2017, mas a cena nunca me saiu da memória. Que ressentimento era aquele que se entranhava tão profundamente na alma de uma pessoa a ponto de fazê-la cultivar tamanho ódio pelo resto da vida?
Minha amiga o contestava com muito conhecimento de causa: há décadas dedicava-se às questões da guerra colonial e das memórias do tempo da ditadura. Desdobrava-se em argumentos, mas o máximo que conseguiu foi a resposta automática, baseada na própria experiência do homem: a senhora tem uma opinião, eu tenho a minha.
Então lembrei-me do famoso arrastão de Carcavelos. O arrastão que não houve, mas que foi noticiado como verdade e com escândalo. Uma história desmontada num breve documentário que se tornou famoso.
Tudo começou com a denúncia do dono de um restaurante à beira da praia, assustado com a afluência de negros naquele feriado de 10 de junho, e alertou a polícia. “Uma concentração anormal de negros”, diz-se a certa altura do filme.
O denunciante era também oriundo de uma ex-colônia africana. O tumulto que se instalou na praia quando a polícia chegou ocupou o noticiário por dias seguidos, assanhou os líderes partidários de direita e impulsionou a manifestação fascista já programada para aquele fim de semana mas que, antes disso, não prometia reunir tanta gente orgulhosa de ser “descendente de Afonso Henriques”, de não ter obtido seus documentos “no Martim Moniz”, que desejava despachar os africanos “para a terra deles”, que exigia “Portugal para os portugueses” e que erguia o braço direito sem pretender justificativas tortas: não foram mal interpretados, não estavam apenas a acenar a correligionários.
Grupelhos, grupelhos, dizia-se então, como se diz agora.
Foi em 2005, mas já estava tudo ali.
Quando André Ventura conquistou sua vaga no Parlamento, logo na primeira tentativa, com sua recém-criada legenda espertamente batizada não com o nome de um partido mas com uma interjeição banal que qualquer um repete em momentos de raiva, era claro que ampliaria a sua influência. Ganhara popularidade como comentarista do Benfica na CMTV, o canal do popularesco Correio da Manhã, o mesmo que depois o apresentaria num “momento fofura” com sua coelhinha de estimação numa peça dedicada ao cuidado com os animais, notável peça de propaganda disfarçada de serviço público que, por tabela, exaltava o zelo dos policiais na proteção das pessoas.
Legitimado pelo voto, Ventura passava a ter um palanque oficial e o direito a participar de audiências com o primeiro-ministro e o presidente, a falar para a TV como qualquer outro deputado, em especial para a TV pública, submetida à fiscalização meticulosa e cotidiana de todas as forças partidárias. Recebia atenção especial nas manifestações que estimulava e espaço de sobra para adotar habilmente um comportamento ambíguo, que afirma uma coisa para logo em seguida negá-la e imediatamente vitimizar-se como alguém que teve seus gestos e palavras maldosamente distorcidos. João Miguel Tavares assinalou muito bem essa ambiguidade em artigo no Público de 30 de junho, na esteira da passeata em que Ventura lançaria sua candidatura à presidência, na linha de frente da faixa com a consigna recorrente de seu partido: “Portugal não é racista”. Ali faria o tal gesto que não, nunca, de maneira nenhuma representaria a saudação fascista. O articulista, porém, compara-o apenas a Trump, sem citar Bolsonaro, que segue a mesma cartilha.
Também em 30 de junho o mesmo jornal publicaria extensa entrevista com o autor de um livro sobre o Chega, que chamava de “direita anti-sistema”, e assumia o discurso do líder do partido tanto nessa definição quanto nas respostas: não, apesar de o programa partidário ser muito explícito nesses quesitos, nem Ventura nem o Chega eram xenófobos ou racistas, embora pudesse haver simpatizantes ou militantes com essas características.
Por que um jornal como o Público resolve dar espaço a um pesquisador que se comporta mais como um porta-voz do que como um analista, por que ajuda a divulgar o livro reproduzindo-lhe a capa em que o deputado aparece no púlpito do Parlamento como um respeitável tribuno, é dessas coisas que só uma compreensão distorcida e formalista do papel do jornalismo pode explicar.
Mas há um trecho nessa entrevista que merece ser relido à luz dos atuais acontecimentos. É quando a repórter pergunta se a normalização de discursos e comportamentos preconceituosos incentivaria atos violentos contra ciganos, afro-descendentes, LGBT e militantes de esquerda. A resposta, como tantas outras, é dúbia: alguns dizem que sim, outros dizem que não, pelo contrário, pois um partido de direita radical com representação parlamentar, como até então não existia no país, ofereceria um espaço institucional para essas manifestações e cortaria o ímpeto das ações de rua. “Não acho que [o surgimento do Chega] corresponda a um aumento de violência”, diz o entrevistado. Como se a incitação à violência fossem apenas palavras. Como se palavras fossem apenas palavras e não produzissem coisas.
Então a violência começa a aumentar. Em fins de julho, o assassinato do ator negro Bruno Candé por um idoso ex-combatente da guerra colonial, que o teria ofendido repetidamente com o mesmo rancor dos que não se conformaram com o fim do que lhes restava do império, detonou uma série de protestos antirracistas e a reação imediata do Chega. Até que agora ocorreram a manifestação de mascarados empunhando tochas, à moda da Ku Klux Klan, e as ameaças anônimas a deputadas e militantes antirracistas.
“Ah, gente, não é nada!”, publicou Bruno Antunes no Facebook, aproveitando uma charge em que um grupo de pessoas vê um objeto emergindo do chão e uma delas diz às demais essa frase, menosprezando o achado, sem perceber que se trata da ponta de um dos braços de uma gigantesca suástica oculta no subsolo. Com esse mote irônico, Bruno vai relacionando a sequência de agressões protagonizadas desde janeiro por Ventura e seus simpatizantes contra negros, ciganos, refugiados, até culminar nos fatos mais recentes.
Em um dia, o post teve 3,5 mil curtidas, 5,8 mil compartilhamentos e 2,3 mil comentários, muitos deles carregados de ódio ou ironia. Alguns, curiosamente, recordando o episódio de Carcavelos, o tal arrastão que nunca houve, mas que ficou na memória daquelas pessoas como o contrário do que foi.
O post citava apenas os principais fatos noticiados, mas há vários outros relatados por associações de defesa de direitos civis que demonstram a existência de uma crescente ação intimidatória articulada da extrema-direita. Alguns tiveram pouca repercussão, outros sequer foram denunciados.
Denunciar ou não é sempre um dilema nesses casos, porque a denúncia dá a esses grupos a visibilidade pretendida, mas o silêncio costuma ser pior, porque nem por isso eles deixam de agir, e não serão contidos se forem ignorados. O problema principal é o contexto que faz emergir essas organizações. Como escreveu Florestan Fernandes tempos atrás, o fascismo foi derrotado na Segunda Guerra Mundial mas, como realidade histórica, não perdeu “nem seu significado político nem sua influência ativa” e, “como ideologia e utopia, persistiu até hoje, tanto de modo difuso quanto como uma poderosa força política organizada”.
“Hoje” era o início da década de 1970, mas o quase meio século decorrido não alterou as bases da análise e, por desalentador que seja, não é difícil perceber que o atual recrudescimento do fascismo resulta de uma reestruturação do capitalismo que degradou profundamente as condições de trabalho e vem desacreditando a democracia representativa. Já se vislumbrava uma nova grande crise financeira mundial quando surgiu a pandemia, que instaurou um ambiente de insegurança e ansiedade inéditos. Lideranças fascistas surfam essa onda com muita competência, excitando emoções que em outros momentos ficavam adormecidas, mas nunca deixaram de estar ali.
Até agora Portugal parecia orgulhar-se de ser uma exceção em meio à avalanche retrógrada que se espalhava pelo mundo. Tantas décadas de democracia depois da longa ditadura podem ter levado a alguma acomodação, à confiança excessiva no funcionamento das instituições e na irreversibilidade de certas conquistas, embora, na vida cotidiana – na relação entre vizinhos, no ambiente de trabalho, mesmo numa prosaica viagem de táxi –, se fossem repetindo e agravando manifestações de ódio, discriminação e intolerância. Faz-se vista grossa, olha-se para o lado, empurra-se com a barriga, não é nada, não é nada, não é nada, até que os preconceitos entranhados nas profundezas da alma se sentem à vontade para descartar suas máscaras e dar a cara em toda a sua brutalidade. Será que finalmente se vai perceber a hora de dizer… chega?