Publicado na Rede Brasil Atual
Por Eduardo Maretti
O programa Casa Verde e Amarela, anunciado pelo governo na terça-feira (25), em substituição ao Minha Casa Minha Vida, está longe de garantir o combate ao principal problema do déficit habitacional brasileiro (cerca de 8 milhões de moradias): atender as famílias de menor renda, que não têm capacidade sequer para conseguir financiamento. “O déficit vai ficar do mesmo tamanho. Ou até aumentar, em função da crise econômica”, na opinião da ex-ministra do Planejamento Miriam Belchior, titular da pasta no primeiro mandato de Dilma Rousseff.
Ela ironiza o programa anunciado por Bolsonaro classificando-o como “nova modalidade de programa: o programa fake de habitação”. Para explicar sua avaliação do programa de habitação, a ex-ministra comenta sobre “o palco” montado pelo governo para o anúncio na terça-feira. “Quem fala na cerimônia é o presidente da Febraban (Isaac Sidney). O setor da construção civil não estava nem no palco e nem falou. Quem é chamado a falar é o setor financeiro. Por isso é um programa fake”, explica, em entrevista à RBA.
No Casa Verde e Amarela não há sequer uma meta relativa à população cuja faixa de renda é de até R$ 1.800, a faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, que tem sido esvaziado no atual governo e será extinto. “Não dá para falar que isso é um programa habitacional”, diz a ex-ministra.
Finanças
Não à toa, o mercado financeiro, com a palavra de Sidney, não só teve voz na cerimônia de lançamento do Casa Verde e Amarela como demonstrou um otimismo irreal diante da crise econômica e sanitária do país. “Estamos num cenário alvissareiro”, afirmou o presidente da Febraban. “Enxergamos sinais melhores de retomada da economia, aumento na confiança dos empresários e consumidores”, destacou.
Sobre o Bolsa Família, que o governo também pretende extinguir para dar lugar ao “Renda Brasil”, a ideia do ministro da Economia, Paulo Guedes, é acabar com outros programas (Farmácia Popular, abono salarial), já que a limitação do teto de gastos não permite outra solução.
Mas não se sabe nem mesmo se Guedes continuará no governo. Bolsonaro o colocou de escanteio no lançamento do programa habitacional. Há um embate no governo, entre Guedes, para quem o teto de gastos é uma questão de honra, e os que defendem – inclusive de olho nas eleições de 2022 – que esse teto deve ser “furado”.
Leia a entrevista de Miriam Belchior:
Por que você classifica o Casa Verde e Amarela de “programa fake”?
Primeiro, falaram de uma modalidade de regularização fundiária de reforma de imóveis, para quem já tem casa própria. Para isso, a meta é 130 mil unidades, o que é ridículo para o tamanho do Brasil. Estão requentando uma proposta do Temer, o Cartão Reforma, que foi um fracasso retumbante. Falam que vai-se chegar a 1 milhão de beneficiados até o final do governo. Mas não tem recursos para isso, estamos vendo como estão montando o orçamento de 2021, com teto de gastos.
Sobre acesso mesmo à habitação, quem não tem casa e vive de aluguel, a única coisa que tem é redução de juros de financiamento. Mas 80% do déficit habitacional se concentra em famílias com renda de até R$ 1.800, que não têm renda para fazer financiamento. Por isso, não adianta baixar juros. Não tem nem uma meta relativa a essa faixa de renda, a faixa 1 do Minha Casa Minha Vida.
Para ter uma visão de escala: nós contratamos, em sete anos, 4 milhões e 251 mil casas. Entregamos 2 milhões e setecentas mil. Do que contratamos, metade era para renda familiar até 1.800 reais. Mais de 2 milhões de casas. Por que esse era o foco? Se 80% do déficit do país está aí, é para essa população que é preciso oferecer alternativa. E o programa (de Bolsonaro) não oferece nenhuma.
Em 2019 eles zeraram a contratação de novas unidades nessa faixa. Até as 100 mil unidades que estavam em andamento eles paralisaram porque, com teto de gastos, não tem milagre. Esse programa é insignificante, ridículo. O déficit vai ficar do mesmo tamanho. Ou até aumentar, em função da crise econômica.
A gente vê aquele palco onde lançaram o programa ontem e vê o que é esse programa. Quem fala na cerimônia é o presidente da Federação dos Bancos. O setor da construção civil não estava nem no palco e nem falou. Quem é chamado a falar é o setor financeiro. Por isso é um programa fake.
É coerente com a ideia da participação dos bancos privados no programa…
O que os bancos privados fazem são as faixas 2 e 3. A Caixa é que fazia a faixa 1, e depois o Banco do Brasil entrou um pouco nos nossos governos. Porque os bancos privados não têm interesse para a faixa de menor renda.
Para as faixas 2 e 3 eles já fazem financiamento, não é exclusivo dos bancos públicos. Isso também não muda. Por que é um programa fake? Porque não ataca o centro do problema, que é o déficit habitacional brasileiro. Está fazendo de conta. Estão tirando de saúde e educação, como vão garantir recursos para habitação? Com teto de gastos não é possível fazer. Não dá para falar que isso é um programa habitacional.
O Bolsa Família era um programa multifuncional: a criança precisava ser vacinada, ir à escola etc. Não se sabe o que será o Renda Brasil…
É pior ainda, porque eles travestem a extinção de direitos num novo programa de renda. Para fazer o Renda Brasil, o Guedes estava propondo extinguir o Farmácia Popular, que vai significar aumento de gastos no SUS. Querem acabar com o abono salarial, seguro-defeso e salário família.
Ou seja, eles dão com uma mão o que seria um novo programa e tiram com a outra. Estão dando aos pobres tirando dos pobres. E eles têm um problema político: como vão ter que resolver a questão do auxílio emergencial, resolvem isso acabando com outros programas sociais.
Bolsonaro disse que o auxílio vai ser ampliado até dezembro, mas não sabe ainda o valor, que pode ser entre 200 e 600 reais...
Acho que há um enorme embate no governo. Para o Guedes é fundamental manter o teto de gastos, o que é um absurdo para o país. Até economistas ortodoxos estão defendendo flexibilizar isso, que para o Guedes é uma questão de honra. Para Bolsonaro, até há pouco tempo, era. Há uma tensão dentro do governo sobre isso.
A grande mídia, o mercado financeiro e o presidente da Câmara defendem o teto de gastos com unhas e dentes, de maneira completamente equivocada, como se isso fosse salvar o país e o crescimento. Dizem que não tem dinheiro, mas se não tivesse não pagariam o auxílio emergencial.
Todos os países estão aumentando a dívida nesse momento. Não tem alternativa. Bolsonaro percebe que há oportunidades politicas para sua reeleição em 2022, mas não resolve os problemas do país de hoje.
O jeito do Guedes de entregar para ele um novo programa de transferência de renda é acabar com outros programas. Porque com teto de gastos só é possível fazer dessa maneira. Bolsonaro sabe que é um tiro no pé acabar com o abono salarial, Farmácia Popular etc., e quer um auxílio emergencial maior ou uma transferência que substitua o Bolsa Família também maior. Isso não é possível sem furar o teto de gastos. Isso é que está em debate no governo hoje.
O Orçamento de Guerra não fura o teto de gastos?
Como foi declarada emergência, vai furar o teto em 2020, por causa da excepcionalidade do ano. Só que o Guedes acha que, quando chegar 31 de dezembro, vira a chavinha e os problemas do país acabam, e pode voltar o teto de gastos.
Segunda-feira (31) eles têm que entregar o orçamento ao Congresso. Todos os trabalhos internos nos ministérios consideram que vai ter teto de gastos, e vão reduzir ainda mais recursos da saúde e educação. A população que vai estar completamente à mercê da situação econômica, sem emprego e sem alternativa, vai ficar em situação bem pior.
A esquerda e a oposição de modo geral não estão subestimando a capacidade de Bolsonaro se reeleger?
Não, acho que não. Quem está no governo, se tiver uma avaliação mediana, tem enorme chances de se reeleger. Você tem na mão instrumentos importantes, e eles estão usando esses instrumentos de fato como podem. A questão é que já existe uma avaliação de que há crimes suficientes para ele ser impedido.
A partir de uma negociação com o “Centrão”, a sustentação recente dele está em cima da discussão de montar uma base mais firme no Congresso e o apoio do mercado e da grande mídia para fazer as reformas, manter o teto e tudo o mais.
A Globo bate nele de manhã, de tarde e de noite, mas defende a política do Guedes. O que vai acontecer se ele furar o teto de gastos? Ele vai continuar tendo apoio? Se ele fura o teto, Guedes sai do governo, como o mercado financeiro e a mídia – que o apoiam só por causa da politica econômica – vão reagir a isso? Vão ser desengavetados os pedidos de impeachment?
Mas o impeachment se viabiliza com apoio de mais de um terço da população?
A Dilma também tinha, mas com a Globo convocando, com dinheiro e tudo o mais, fizeram manifestações de rua e várias coisas. O que farão a Globo e outras instituições que apoiam a política do Guedes se Bolsonaro mudar a inclinação do governo e derrubar o teto?
Porque não é só ele que joga, o outro lado também joga. E pode criar condições de se mudar a avaliação dele. Basta ver o que ele fez com os jornalistas no fim de semana. Não é muito difícil provocá-lo para ele ser o que é. Ficou quietinho um mês, mas mostrou agora de novo a sua cara verdadeira. Esse jogo de forças está em andamento.