Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor
A maior ameaça à democracia brasileira hoje – estranhamente – não parte de Jair Bolsonaro. Vem da manutenção do teto de gastos. Apesar dos arreganhos presidenciais contra jornalistas, de seus possíveis laços com o crime organizado e de sua índole autoritária, Bolsonaro foi enquadrado nos marcos da institucionalidade realmente existente.
A ampla frente democrática formada na prática em maio/junho último – período áureo de seu exibicionismo golpista na frente de quartéis e na rampa do planalto – o colocou na casinha. A força da sociedade civil, do Congresso, do STF e da Constituição, além de sua vulnerabilidade evidenciada na prisão de Fabrício Queiroz, levou o presidente à defensiva e à necessidade de fazer política para impedir o desmoronamento de sua gestão.
A PARTIR DAÍ, Bolsonaro entrou no jogo que repudiava em campanha: acertou-se com o centrão e percebeu que medidas sociais, como o auxílio emergencial, alavancam sua popularidade, o tornam eleitor de peso em novembro e lhe abrem janelas para 2022. Saíram de cena os figurantes de trem-fantasma de seu primeiro ano e meio de gestão. Cadê os filhos? Cadê Olavo de Carvalho? Cadê Weintraub? Mesmo os celerados que permanecem na esplanada, como Ernesto Araujo, Damares Alves e Ricardo Salles, perdem relevância na fachada pública do governo (o que não significa estarem inativos nos bastidores).
Enfim, Bolsonaro foi empurrado para o jogo político-institucional de uma democracia liberal real. E democracia no Brasil, historicamente, é democracia com abismos sociais, privilégios e desequilíbrios de toda ordem. É o que tivemos desde 1988 e isso representa um avanço, por mais paradoxal que seja. As instituições funcionam normalmente, no contexto das anomalias históricas do Brasil. Acabou a ameaça golpista por parte do capitão. Ele ainda vai falar muita boçalidade por aí – como tem feito -, mas são urros que fazem parte de seu show.
O PERIGO REAL VEM DO AJUSTE FISCAL permanente, representado pelo torniquete do teto de gastos. Sua manutenção não equivale a estabilidade alguma, mas ao seu contrário. Para possibilitar gastos e investimentos – na lógica do teto – é preciso arrochar outras itens do orçamento, como salários, e demitir funcionários públicos em massa, quebrar direitos, limar o SUS, a educação pública, a área de segurança, deixar pontes e estradas cairem de podres, arrombar as finanças dos estados e acabar com o que resta de patrimônio público, vendendo as riquezas nacionais na bacia das almas. Para manter o teto é preciso estabelecer o desmanche como forma de governo.
Teto significa caos político e social. Teto significa reprimir violentamente qualquer protesto contra sua manutenção. Manter tal compressão às contas públicas resulta em aumento exponencial da insatisfação social, o que suscita resistência e oposição de largas parcelas da população. O potencial de explosões sociais anárquicas é imenso. A resolução mais à mão sempre é repressão, tentativas de obstrução de canais democráticos de expressão e fechamento do regime. Teto e democracia se excluem.
É PRECISO TER EM MENTE A BRUTALIDADE DA MEDIDA. Nem mesmo a efetivação dos programas Renda Brasil e Casa Verde e Amarela são possíveis com o congelamento orçamentário por vinte anos. O teto criminaliza qualquer política fiscal e de investimentos.
Para ativar programa semelhante, Augusto Pinochet recorreu ao massacre físico diante de qualquer fiapo de contrariedade, no Chile dos anos 1970. Seu neoliberalismo avant la lettre só pode ser efetivado com sangue. Muito.
Hoje, a situação no Brasil mudou, em relação aos últimos 45 dias. Repetindo: a ameaça principal à democracia não vem de Bolsonaro, por mais incrível que possa parecer. Vem dos mercados, dos farialimers, da alta finança, da mídia e de gente que diz desejar apenas que os mercados funcionem livremente.