Originalmente publicado por CONJUR
Por Lenio Streck
Debates teóricos são coisa rara. No Brasil não se naturalizou a ideia de que um debate teórico-jurídico é um debate teórico-jurídico; desacordos teóricos não são críticas pessoais. Pelo menos não deveriam ser. Para debater, há que ser educado. Lhano. Coisa rara hoje em dia.
O tema que trago hoje atinge toda a República e coloca o Direito brasileiro frente ao passado ocidental. Falo de nossas origens. Gregas. Mito, logos, eidos, ousia, enfim, sem eles não seríamos o que somos. Para o bem e para o mal.
O que me motivou? Esta notícia: “[Ministro Edson] Fachin sugere que plenário do STF reveja regra de empate em casos penais”. Na boa matéria de Fernanda Valente, aqui para ConJur, leio que o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin pretende discutir o entendimento que favorece réus ou investigados em ações penais quando há empate nos votos. “Com o empate, a regra do regimento poderia ser interpretada para, segundo o ministro, aguardar o voto do ministro que está ausente, com o consequente sobrestamento do processo.”
Bem, por onde começar?
Pelo princípio. Afinal, no princípio era o…mito (com todos os problemas da ambiguidade dessa palavra hoje em dia). Explicarei.
Vejamos a manchete novamente. “Fachin sugere que plenário do STF reveja regra de empate em casos penais”. É isso mesmo que o Ministro Fachin quer. Mas o ponto fulcral aí vai além disso. Fachin não quer apenas rever uma regra de empate. Quer rever um princípio. Quer rever a própria história.
A discussão aqui é muito maior que o Regimento Interno do STF. Fachin quer rever um princípio fundamental que faz o Direito ser o que é. O ministro Edson Fachin quer rever a regra de empate em casos penais. O problema é que a regra de empate em casos penais é simplesmente uma materialização regulamentar de um princípio estruturante de civilização.
Na verdade, o ministro sugere que o plenário do STF reescreva As Eumênidas, da trilogia Orestéia e descarte Palas Atena, a primeira juíza do Ocidente (a peça é linda; “Conclamo os cidadãos de Atenas…”)..
Na Oresteia, Palas Atena absolve Orestes, face ao empate. Rejeita-se a vingança das Eríneas, as deusas da fúria (que, atualmente, mudaram-se para as redes sociais) e se inaugura o in dubio pro reo. Moral da história: rompe-se um ciclo. Acabam-se as vinganças. A bem da verdade, tratou-se de uma antevisão da modernidade. Uma espécie de ex-parte principio antecipado!
O ministro Edson Fachin, portanto, sugere uma outra interpretação para um dispositivo do RISTF? Pode ser, essa é uma leitura. Mas o que importa é o que está por trás disso. Isto porque, ao fazê-lo, quer contrariar a tradição mais fundamental do lugar do Direito em uma civilização.
O Ministro, entre reo e societate, fica com societate. Diante do indivíduo, escolhe o Leviatã.
A epistemologia da tese do Ministro não encontra amparo em nenhum nome em toda a tradição do Direito. Rejeita Palas Atena, e rejeita Dworkin, e Ferrajoli, e todos os autores que sacaram que o Direito tem um papel de justificação e legitimação da possibilidade de coerção do Estado. Por isso, por exemplo, na “geografia da Constituição”, as garantias contra o Estado vêm bem no início, como um muro de contenção contra o arbítrio. Primeiro a CF diz: vamos desigualar a desigualação. E, logo depois, no artigo 5º., diz: aqui está o rol de garantias que você pode usar contra o arbítrio, venha ele de onde vier, mormente se da parte do Estado. E o judiciário deve garantir essas garantias contra o arbítrio. Ou seja: O Estado é maior. Ele é o grandão. E o cidadão é o pequeno nessa relação. Logo, o ônus é sempre do Estado.
A tese do Ministro, se me permitem — e o faço com toda lhaneza —, lembra o pessoal da CBF. Na primeira fase da Copa do Brasil, aos clubes gigantes basta empatar com o time pequeninho. Flamengo vai jogar com o River do Piauí e basta empatar. Na dúvida, no empate, ganha o time…grande! Qual é o sentido disso? O ônus é do River? O ônus é do réu?
Gostaria de saber — do acadêmico e do ministro — que concepção de Direito é essa, que não apenas endossa um vazio epistêmico como é o in dubio pro societate como busca fazer dele uma noção institucionalizada no Supremo. Em matéria penal.
Pergunto-me indagar que concepção de Direito é essa. E que concepção de societate é essa.
Afinal, no princípio era o princípio. Arché. Início e fundamento. Sem princípio, não há Direito. Sem arché, é anarché. Sem Direito, até pode haver sociedade; nunca uma sociedade civilizada.
Que o Supremo não CBFize a deusa Palas Atena.
Com todo o respeito que tenho pela Suprema Corte — e quem me acompanha sabe de minha luta institucional contra o Contempt of Court pelo qual tem passado nosso STF (fui o primeiro ou um dos primeiros a denunciar) —, a proposta do estimado ministro Edson Fachin não tem o mínimo de sustentação. Nem jurídica, nem histórica, nem mitológica.
Como falei da tribuna do STF, sou um amicus epistêmico da Corte. Jamais um inimicus. Estes a Corte têm de sobra, como já se viu recentemente!