O liberalismo impõe limite ao poder do povo. Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 6 de outubro de 2020 às 11:43

Originalmente publicado por BLOG DA BOI TEMPO

Por Luis Felipe Miguel

É curioso que o debate sobre o liberalismo político tenha ganhado público no Brasil no momento em que estão sob ataque tantas das liberdades e dos direitos associados a ele – igualdade perante a lei, liberdade de expressão, liberdade de associação, justo processo legal. E, de toda a complexa e multifacetada tradição liberal, é exatamente a noção de direitos que está sob maior ataque, a partir de uma leitura simplista que a reduz a uma fachada hipócrita, destinada a ocultar múltiplas formas de dominação social.

Ela ataca, em primeiro lugar, as contradições entre as proclamações grandiloquentes dos arautos do liberalismo e suas práticas concretas, tantas vezes racistas, sexistas e colonialistas. Os exemplos não escasseiam – de Locke a Jefferson, passando por Franklin e Stuart Mill – e é fácil encher vários volumes com eles. No entanto, é bem mais importante entender de que maneira a própria concepção liberal do indivíduo portador de direitos é atravessada por pressupostos que, uma vez desvelados, mostram que, no lugar da pretensa universalidade, se encontra o homem branco proprietário.

Esse esforço é feito há muito tempo. Mas – e é isso que a denúncia simplista hoje em voga não consegue alcançar – valores liberais ajudam a sustentar as críticas aos limites do próprio liberalismo, exigindo que a universalidade proclamada seja alcançada, que as exclusões sejam suprimidas e que a igualdade abstrata ganhe concretude. De Mary Wollstonecraft a Karl Marx a Aimé Césaire e adiante, essa reapropriação crítica, que usa os valores liberais para tensionar os limites de uma ordem liberal incapaz de efetivá-los, é parte importante do repertório dos movimentos emancipatórios.

Vale aqui evocar o falecido filósofo italiano Domenico Losurdo, que no Brasil se tornou o farol do antiliberalismo de redes sociais. A certa altura de O marxismo ocidental, criticando o estruturalismo francês, ele escreve: “O conceito de individuo e de homem [sic] enquanto tal, independente do sexo, do patrimônio ou da cor da pele, é o resultado de multisseculares lutas pelo reconhecimento, conduzidas agitando exatamente a bandeira do humanismo tão desprezado por Althusser”. Sem entrar na discussão sobre a apreciação feita do trabalho de Althusser ou sobre o discutível uso da categoria “reconhecimento”, vale pontuar que o conceito de ser humano “enquanto tal”, que Losurdo exalta por seu potencial emancipador, é indissociável do liberalismo, que o operacionalizou política e juridicamente e que, ao fazê-lo, também forneceu uma bandeira a ser agitada pelos grupos dominados. Em suma: o “humanismo” que Losurdo quer resgatar de seus usos historicamente limitados e recuperar em sua pujança universalizante não é estranho ao liberalismo ao qual ele nega essa possibilidade.

Esse tipo de ataque ao liberalismo não se dá apenas por antipatia ou pelo desejo de mostrar que os ídolos têm pés de barro. Da doutrina liberal dos direitos brota a compreensão de que é necessário controlar o exercício do poder, a fim de que não se torne despótico. É possível questionar, como muitos já questionaram, o foco exclusivo no poder do Estado, que leva a tradição liberal a minimizar ou mesmo ignorar os efeitos do exercício de poderes privados – nas empresas, no mercado, nas famílias. Mas a noção de direitos como limite ao poder é constitutiva dela.

O marxismo de Losurdo, que despreza como ingenuidade toda referência ao projeto ético que animava Marx e exalta o “pragmatismo” que atribui a líderes como Stálin ou Mao, acaba se reduzindo a uma via para a acumulação primitiva em países pobres. E, como costuma ocorrer em momentos de acumulação primitiva, evocar qualquer direito ou liberdade daqueles que a sofrem significa retardá-la. Ainda que tenha se apresentado como um teórico do reconhecimento, o filósofo italiano trabalha com uma leitura mecânica que dá ao desenvolvimento material primazia absoluta e despreza os valores vinculados à liberdade pessoal e à autonomia individual. Nesse enquadramento, a reivindicação liberal de limitação do poder é pior do que inócua, é danosa.

Uma estratégia frequente, quanto a essa questão, é indicar as contradições entre liberalismo e democracia. Não há nenhuma novidade aí – e uma boa síntese introdutória pode ser encontrada num livrinho de outro autor italiano, o liberal Norberto Bobbio. Ao propor a limitação do exercício de qualquer forma de poder, o liberalismo impõe limites também ao poder democrático. Muitas vezes, é usado para barrar projetos de aprofundamento da democracia e da igualdade. Mas a ideia de um poder absoluto, mesmo que democrático, pode, quando muito, satisfazer quem acredita na ideia de um povo uno, indiviso e homogêneo e também de uma identidade perfeita entre esse povo e aqueles que exercem o poder em seu nome. A história já mostrou que essas são ilusões perigosas.

Entre democracia e liberalismo, há tensões que, como diz Chantal Mouffe, jamais serão solucionadas. A convivência com esse paradoxo é a condição da edificação de uma ordem política que aponte na direção da superação da dominação e na ampliação da autonomia de todos e de cada um3. O fato de que não é possível delinear um ordenamento político harmonioso a partir de um princípio único pode ser decepcionante, mas, como se diz por aí, é o que temos para hoje.

Não custa lembrar que vivemos um momento, pelo mundo afora e em particular no Brasil, em que autoridades eleitas evocam a “vontade democrática da maioria” para esmagar dissidentes e destruir conquistas de tantos grupos: mulheres, comunidade LGBT, população negra, povos indígenas. É difícil ver como o desprezo pelo discurso dos direitos, em favor de uma visão simplista do que seria a democracia, pode nos ajudar a resistir a essa ofensiva.

Enquanto isso, os elementos mais problemáticos da doutrina liberal, que são também aqueles com efeitos políticos mais negativos, fogem ao escopo da crítica. Refiro-me, em especial, à noção do contrato como regulador universal das relações humanas. Nela se corporificam as ilusões interessadas que afirmam a simetria abstrata de pessoas em circunstâncias concretas muito diferentes e ganham curso os mecanismos que permitem que a subordinação seja apresentada como produto da escolha autônoma – o que Carole Pateman, em especial, demonstrou a respeito dos contratos de trabalho e de casamento.

Por meio do instituto do contrato, os poderes privados se sobrepõem à regulação pública, solapando a democracia. É o que ocorre nos “contratos de adesão” que aceitamos cada vez que usamos um serviço ou mesmo adquirimos um produto, conforme denunciam mesmo juristas liberais; é o que sustenta a campanha em favor da privatização das relações trabalhistas e da “livre negociação”; é o que orienta o sonho reacionário de uma sociedade toda regida pelo mercado, dos autoproclamados “libertários” da direita. O fetiche do contrato é onde permanece mais sólida a ligação entre o liberalismo político e o econômico e onde fica claro que a visão liberal é insuficiente para alimentar um projeto de emancipação social radical. Infelizmente, a crítica a ele permanece de lado, quando o esforço está concentrado em bombardear de forma simplista os aspectos do liberalismo que foram reapropriados, ao longo da história, pelos defensores de uma sociedade integralmente livre e igualitária.