O jornalista Joaquim de Carvalho, paulista de Assis, escreveu em 1994 o primeira grande perfil de Celso Russomanno. Foi para a revista Veja São Paulo. Russomanno era um campeão de audiência no programa sensacionalista Aqui Agora e havia se elegido deputado federal com mais de 200 mil votos.
A convite do Diário, Joaquim escreveu sobre os bastidores dessa matéria. Ele conta que Russomanno lhe suplicou, de mãos juntas, para não publicar uma denúncia. “Se você acredita que eu posso fazer alguma coisa boa por este país, pelo direito do consumidor, não publica isso. Vai ficar difícil para mim.”
Joaquim passou pelo Estadão, Veja e Jornal Nacional. Hoje, aos 49 anos, faz reportagens para a produtora Memória Magnética. É autor do livro Basta! Sensacionalismo e Farsa na Cobertura Jornalística do Assassinato de PC Farias, finalista do Prêmio Jabuti de 2005.
O relato de Joaquim:
Eu conheci Celso Russomanno quando recebi da revista Veja a tarefa de cobrir o assassinato do governador do Acre Edmundo Pinto, no hotel Della Volpe, em São Paulo. Era maio de 1992. Russomanno havia se tornado celebridade depois de estrelar uma reportagem que mostrava sua mulher morrendo no hospital São Camilo, supostamente por erro médico, dois anos antes. No Della Volpe, Russsomanno fazia as vezes de assessor de imprensa, mas não viabilizou uma única entrevista com os proprietários ou diretores do hotel. Sua preocupação era com a imagem do lugar, o que é natural na função que desempenhava, mas soava estranho que o mesmo profissional tivesse dupla militância. Depois de passar manhãs e tardes barrando repórteres no saguão, Russomanno pulava o balcão, pegava o microfone do SBT e saía atrás de notícias para o programa Aqui Agora, cujo elenco passou a integrar depois da cobertura do falecimento de sua esposa.
No Aqui Agora, Russomanno fazia reportagens sobre pessoas lesadas. Brigava com lojistas, corria atrás de devedores na rua e até levou uma surra dos funcionários de uma empresa que comprava e vendia telefones, denunciada por ele. Uma de suas maiores façanhas foi obter aposentadoria para 11 000 velhinhos, depois que denunciou a burocracia do INSS e entrevistou em Brasília o então ministro da Previdência Social, que lhe deu uma espécie de procuração para resolver o problema das aposentadorias. Russomanno passou a receber e a despachar pedidos de pensão, que tinham atendimento instantâneo. Na sua área preferida, a defesa do consumidor, procurava mediar acordos no ar, e criou um bordão: “Estando bom para ambas as partes, está bom para Celso Russomanno.” Ele ficou famoso. Sempre que havia uma situação de aparente desrespeito a direitos, em qualquer parte do Brasil as pessoas ameaçavam chamar Celso Russomanno.
Em 1994, o senador Mário Covas, candidato a governador, o convidou para disputar uma vaga na Câmara dos Deputados. Celso Russomano saiu da eleição como o campeão das urnas, com 233 482 votos. Bateu veteranos da política, como o ex-governador Franco Montoro, e seu desempenho chamou a atenção da imprensa. Uma semana depois da eleição, os jornais publicaram perfis de Russomanno, todos destacando a faceta de justiceiro. A revista Veja São Paulo também quis retratar o campeão das urnas e me pautou para essa tarefa. Passei três dias na companhia de Russomanno e levei outros dois ouvindo pessoas que o conheciam.
O retrato que saiu dessa apuração revelava a convivência de dois personagens completamente distintos em um mesmo RG: o primeiro era um homem que mantinha uma caprichada coleção pessoal de fotos 3 por 4, admitia nunca ter lido uma única obra literária, estudava propor uma lei para obrigar os ônibus e caminhões a colocar os escapamentos voltados para o alto como forma de combater a poluição, pois “essa fumaça é insuportável”, e definia o regime militar da seguinte forma: “Em 1964, dizem os livros de História, os navios americanos estavam cercando o Brasil e, se não houvesse uma solução, o Brasil seria invadido. Foi uma decisão soberana.” O mesmo Russomanno, na época com 38 anos, revelava sua preferência por mulheres mais jovens com o argumento de que as da sua faixa etária eram “encrenca” – “desquitada ou encalhada”. Na época, tinha saído de um namoro com Simony, que anos antes era a estrela do programa infantil Balão Mágico (Simony já tinha 18 anos).
O segundo personagem era um cidadão intelectualmente simples, de voz baixa e macia e que costuma falar com as pessoas bem de perto, quase tocando. Este utilizava o microfone para caçar comerciantes que vendiam mercadoria e não entregavam, pessoas que compravam e não pagavam, planos de saúde que prometiam o paraíso e entregavam o purgatório. Este Russomanno tinha muita audiência. Ele também usava o microfone num programa noturno, o Night and Day, no estilo coluna social, que cobrava por entrevistas. Vez ou outra, o Russomanno baladeiro encontrava o Russomanno justiceiro. Um desses cruzamentos resultou na propaganda da Ibirapuera, empresa que comprava e vendia telefone. O rosto de Russomano ficou meses num anúncio na traseira dos ônibus, acompanhado da frase: “Esta linha eu garanto”. Celso Russomanno tinha conseguido esse anúncio depois de uma série de reportagens sobre trambiques de empresas do setor. A Ibirapuera nunca apareceu nas denúncias apresentadas.
No Night and Day, a audiência de Russomanno era traço. Já no Aqui Agora ele era uma locomotiva de audiência. Cada vez que aparecia, a emissora ganhava de 8 a 10 pontos no Ibope. Seu recorde aconteceu quando a audiência do SBT saltou de 20 para 32 pontos. Um diretor da emissora que me deu entrevista revelou que o SBT desconfiava de uma prática de Russomanno não recomendada: ele ameaçava denunciar no programa diurno empresas que não anunciassem em seu programa noturno. Mas o canal de Silvio Santos fazia vista grossa, de olho nas vantagens que ele trazia ao Aqui Agora toda vez que aparecia.
À medida que a apuração da matéria avançava, menor ficava a figura do campeão de votos. Amigos de Adriana Torres Russomanno, sua mulher, revelaram o espanto com a capacidade dele de realizar uma reportagem enquanto ela morria. Adriana ficou na companhia de parentes quando Russomanno deixou o hospital para apanhar uma câmera de televisão. Ele poderia buscar um médico e obrigá-lo a atendê-la. Também poderia transferi-la para outro hospital. Esses mesmos amigos contaram que ele já não vivia com Adriana quando fez a reportagem. Na época, Russomanno admitiu que havia se separado, mas que, quando do episódio do hospital, os dois estavam reatados. Ele contou que seu casamento era cheio de turbulências, fato que atribuía ao ciúme dela. A reportagem de Russomanno sobre Adriana deu origem a um processo que durou quatro anos. No final, por unanimidade, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu o São Camilo e concluiu que não houve erro médico.
Na época, Russomanno vivia com a filha numa casa ampla no Real Parque, distrito do Morumbi, avaliada em 400 mil dólares. Ali foi feita a maior parte da entrevista. Já era noite e faltavam poucas horas para o fechamento da edição quando perguntei a ele sobre rumores de que a compra daquele imóvel tinha virado caso de polícia. Em resumo, a história era a seguinte: Russomanno comprara a casa por 300 mil dólares, com a facilidade de que a proprietária era mãe do segundo marido de sua sogra, Márcia Torres. O contrato tinha sido assinado por Berenice Ribeiro, cunhada de Márcia e procuradora da mãe. A dívida deveria ter sido quitada em cinco parcelas, mas Russomanno havia pago apenas 10 000 dólares e se recusava a discutir o restante até Berenice ameaçar levar o caso à imprensa. Russomanno deu mais 34 000 dólares e teria ameaçado matar um irmão de Berenice, José Carlos, se o caso se tornasse público.
Eu sabia que a ameaça tinha sido registrada em boletim de ocorrência, mas não conhecia a data nem o distrito policial. Portanto, com as informações de que dispunha, seria difícil publicar essa história. Ao ouvir o relato dos rumores, Russomanno fez cara de espanto e atribuiu o fato à uma fofoca. Numa tentativa de comprovar o que dizia, telefonou na minha frente para proprietária Berenice, e falou: “Imagina o que estão dizendo de mim, que eu ameacei seu irmão e não paguei a casa. O repórter está aqui. Fala para ele que isso não é verdade.” Russomanno me passou o telefone. Depois de me apresentar, Berenice afirmou, sem hesitar: “Ele é um farsante que está agindo de má-fé e colocou o dinheiro da minha casa na campanha política.” Em seguida, Berenice contou que temia que Russomanno dificultasse as visitas da família à filha de Adriana no caso de um processo na Justiça para reaver a casa. “Ele é capaz de tudo”, disse. À medida que Berenice falava, eu repetia as palavras, para que ela confirmasse e Russomanno soubesse da gravidade dos fatos que eu ouvia.
Quando desliguei o telefone, Russomanno ameaçou: “Isso não pode ser publicado. Sou devedor inadimplente e a lei proíbe que se escrache quem deve, e eu vou pagar”. Vendo que não teria efeito, Russomanno fez um apelo. De mãos juntas, ele pediu: “Se você acredita que eu posso fazer alguma coisa boa por este país, pelo direito do consumidor, não publica isso. Vai ficar difícil para mim.” Respondi: “Sou um repórter e o que eu apuro é para ser publicado. Você também é repórter e, no meu lugar, o que faria?” A reportagem terminava com a frase: “O rolo do comprador Celso Russomanno seria um prato cheio para o repórter Celso Russomanno”. As informações publicadas nunca foram desmentidas, Russomanno disputou outras eleições, venceu mais três para deputado federal, perdeu uma para prefeito em Santo André e outra para governador do Estado. Hoje, lidera com folga as pesquisas de intenção de voto para a prefeitura de São Paulo.