Ao eleger Lucho Arce, povo boliviano mostra sua força e resgata democracia. Por Emir Sader

Atualizado em 19 de outubro de 2020 às 14:31
Luis Arce e Evo Morales. Foto: © Sputnik / Ana Delicado Palacios

Segundo país sulamericano a derrotar o neoliberalismo pela via democrática, a Bolivia demonstrou que o povo quer retomar a via aberta pelo governo de Evo Morales. Demonstrando sua força, o povo boliviano derrotou o golpe, reafirmou a via democrática e elegeu a seu candidato presidente do país.

Evo Morales foi o primeiro candidato a presidente da Bolivia a triunfar no primeiro turno, em 2005. Voltou a ganhar no primeiro turno por duas vezes. A direita contestou sua nova vitória no primeiro turno em 2019 e se valeu como pretexto para dar um golpe, apoiado pela OEA. Mas bastou um ano e lutas de resistência do povo boliviano, para que ficasse claro que a vantagem do MAS é ainda maior.

A direita concentrou sua forca em Carlos Mesa, supostamente moderado, de centro, mas que avalizou todo o processo golpista, fazia campanha dizendo que Evo havia dividido a Bolivia e que seria a única possibilidade de unificar pacificamente o pais.

A votação de Lucho Arce demonstrou que a única forca que pode reunificar a Bolivia é o MAS. Porque foi o governo do Evo que incluiu as grandes massas indígenas do pais, sempre excluídas. Para serem integradas, tinham que renunciar à suas identidades, a seus valores, para serem reconhecidos como cidadãos.

Evo se elegeu como primeiro indígena presidente de um país majoritariamente indígena. Em uma caricatura que eu vi em um jornal boliviano na campanha vitoriosa de Evo, senhoras brancas, jogando cartas, uma delas pergunta:

— Mas um índio pode ser presidente?

E outra responde:

— Claro, da Índia.

Não lhes ocorria que um índio pudesse ser presidente da Bolivia e, ainda mais, ser o melhor e o mais importante presidente do pais.

Alvaro Garcia Linera, o principal intelectual latino-americano, que foi chamado por Evo para ser seu vice-presidente, escreveu um artigo fundamental, em que mostra como a esquerda tradicional considerava o indígena como um camponês. Ela lhe dizia:

  • Em que você trabalha? Na terra? Então você é um camponês, esquema o aymara, o quéchua, o guarani. Espere que o operário vem lhe dar condução politica.

Era uma esquerda que aplicava à Bolivia o esquema de Marx no XIX, Brumario de Luis Bonaparte, em que o camponês era o proprietário de pequenas parcelas de terra, isolado dos outros, incapaz de se dirigir politicamente, tinha que ser dirigido.

Foi um marxista latinoamericanao, José Carlos Mariategui, quem introduziu a questão indígena no pensamento da esquerda latinoameficana.

Garcia Linera retoma e resgata a identidade indígena nas suas formas especificas que, inclusive, trabalha coletivamente a terra, diferenciando-se em tudo do camponês europeu. Foi um procedimento teórico indispensável para que o Evo pudesse emergir como o mais importante líder politico da Bolivia.

Evo sempre se reivindicou como indígena e como cocaleiro, por ter se iniciado como líder popular na defesa dos indígenas contras as “fumigacoes maciças” dos Estados Unidos, como sua forma de combater o tráfico de coca.

Evo e os indígenas defendem o seu direito de ter plantações pessoais de coca pela sua tradição milenar de usá-lo como energético. Direito que o governo do Evo aprovou no Congresso.

O governo convocou uma Assembleia Constituinte, que refundou a Bolivia como Estado plurinacional, que reconhece as populações indígenas nas suas especificidades, participando ativamente no novo Estado boliviano.

Foi um governo antineoliberal, que nacionalizou as empresas de gás, do petróleo e dos hidrocarburetos, o que deu um grande impulso na economia boliviana, que se tornou a que mais cresceu no continente.

A Bolivia, que era dos países mais atrasados do continente, junto com o Haiti e o Paraguai, cresceu, se modernizou e se democratizou como nenhum outro no continente. Evo foi reconhecido em todo o mundo como um dos mais importantes governantes.

A Chapa Evo-Garcia Linera articulava um líder indígena com um grande intelectual, como em nenhum outro país do continente havia existido.

Quando ganhou a primeira eleição, em 2005, Evo foi imediatamente comemorar com seus companheiros em Cochabamba. Alvaro teve que convencê-lo, por telefone, a ir a La Paz e a dirigir uma palavras a todos os bolivianos, dos quais ele passaria a ser o presidente. Evo foi, falou, e voltou para Cochabamba.

Na posse, primeiro houve uma cerimonia indígena, em Tihuanaco, cidade mais antiga da Bolivia, no dia seguinte, a posse oficial no Palacio Quemado, cuja praça tinha sido limpa por mulheres indígenas, para que ele chegasse. Foi uma grande festa popular, indígena, antes de tudo.

Evo e Alvaro foram reeleitos duas vezes no primeiro turno e, quando triunfaram pela terceira vez, no ano passado, a direita montou a farsa da fraude eleitoral, mobilizando camadas medias de varias províncias, às quais aderiram as polícias e, depois, as FFAA, que obrigaram a Evo e a Alvaro a abandonarem o governo.

A vitória do MAS confirma o resultado anterior, até por uma maioria mais ampla, e reabre o caminho democrático para que a Bolivia volte a ter um governo legitimo.

Lucho Arce foi o ministro da economia do governo, responsável pelo modelo que levou o pais, superando o neoliberalismo, a crescer como nunca, com distribuição de renda e geração de empregos. Esse o caminho que se reabre, democraticamente, para o povo boliviano.

As atenções do continente se voltam agora para as eleições norte-americanas, mas também para as eleições no Equador e para o desenlace da crise brasileira, para retomar a via democrática e reconstituir a aliança antineoliberal dos governos sulamericanos.