A lição do Chile: sem organização e mobilização popular, nada vai mudar no Brasil. Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 28 de outubro de 2020 às 11:24

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Incêndio em igreja durante manifestação no Chile

Por Luis Felipe Miguel

Tenho visto várias análises sobre o porquê do Brasil parecer incapaz de copiar o Chile. Várias apontam – corretamente, a meu ver – o eleitoralismo da nossa esquerda como um dos problemas.

Eleitoralismo é subordinar toda a estratégia política à disputa eleitoral. É colocar a relação com os movimentos populares a serviço desse objetivo. É reduzir os partidos a máquinas de apresentação de candidaturas. É estar pronto a pagar qualquer preço para obter uma vitória nas eleições, mesmo que isso implique mutilar o projeto político.

A luta política fica restrita à sua dimensão institucional. Isso sempre vale só para a esquerda, é claro: a burguesia nunca se eximiu de usar as armas à sua disposição, da ameaça de desinvestimento e da corrupção aos generais e aos marines, para garantir que seus interesses seriam preservados.
A democracia eleitoral funciona como o canto de sereia, atraindo todas as forças políticas para esse caminho. A igualdade formal do voto tende a deslegitimar simbolicamente outras formas de manifestação política: a eleição é o momento “certo” para a expressão da vontade popular. As vantagens obtidas com uma vitória eleitoral são suficientemente robustas para justificar concessões pontuais e rechaçar qualquer purismo. Quanto mais alto o prêmio, isto é, mais importante o cargo a ser conquistado, maiores as concessões que se justificam.
Foi assim que o sistema político brasileiro domesticou o PT, que nasceu com uma perspectiva diversa. Tenho para mim que o grande ponto de inflexão foi a disputa presidencial de 1989, quando Lula quase chegou lá. Parecia claro que o jeito de chegar ao poder era obter alguns votos a mais, bem mais fácil do que o trabalho de mobilização de base em que o partido apostava antes.
E chegou mesmo, se não ao poder, pelo menos ao governo, onde implementou políticas que beneficiaram os mais pobres. O preço que pagou, porém, foi o abandono de um horizonte de transformação social radical, as alianças com a elite política tradicional, o mergulho na promiscuidade com os donos do dinheiro. E a desmobilização total de sua base, a tal ponto que, quando seus novos aliados decidiram descartá-lo por meio de um golpe, não teve força para resistir.
Temos, aqui, que reconhecer o mérito dos golpistas de 1964. Ao contrário do que ocorreu no restante do Cone Sul, eles mantiveram a competição partidária, as eleições, o Congresso aberto. Tudo como simulacro, mas ainda assim oferecendo recompensas para os vitoriosos. Fomos ensinados não só a canalizar nossos esforços para a disputa eleitoral como também a aceitar que essa disputa fosse ostensivamente tutelada. Esse treinamento continua ecoando na nossa classe política, mesmo em seu setor democrata.
Os chilenos têm muitos desafios pela frente, começando por fazer com que a constituinte que eles aprovaram por vasta maioria seja uma constituinte de verdade, não a engambelação que Piñera quer impor.

O desafio que nós, brasileiros, enfrentamos é mais básico – e ainda mais difícil. É fazer com que nossas lideranças virem a chave e percebam que sem organização e mobilização popular, nada vai mudar.