Originalmente publicado por A TERRA É REDONDA
Por Valério Arcary
Há pressões de um “aristotelismo” infantil na esquerda brasileira. O PT é um partido reformista. Então, todos os que estão no PT são reformistas. Só que é mais complicado. O PSol é um partido eleitoral, então todos os que estão no PSol são eleitoralistas. Também é mais complicado. O PCdB e o PCB são partidos da tradição estalinista. Então, todos os seus militantes são estalinistas. Outra vez, mais complicado. A burguesia brasileira confia em Lula. Falso, é muito mais complicado.
O princípio de identidade é uma lei da lógica formal, uma ideia poderosa. Há sempre um grão de verdade útil no princípio de identidade. Mas a realidade é dialética, portanto, contraditória. O fundamental é interpretar a dinâmica de para onde vamos.
Aos 75 anos Lula continua sendo a principal liderança de esquerda no Brasil, e permanece uma esfinge. Conhecemos a sua trajetória, mas não é possível antecipar os seus próximos movimentos. Lula já se reinventou muitas vezes.
Entre 1966 e 1978, durante os anos de formação, se transformou no mais capaz entre os líderes que se construíram por dentro do aparelho sindical, e se projetou a partir de um papel extraordinário à frente das greves metalúrgicas do ABC, com um discurso classista. Foi o seu momento incendiário
Entre 1979 e 1991 assumiu o papel de liderança política de um partido de esquerda que tinha no centro do seu programa a luta contra a ditadura militar, e a expressão independente da classe trabalhadora, conquistando de forma espetacular um lugar no segundo turno nas eleições de 1989, defendendo o socialismo. Foi o seu momento vermelho.
Entre 1991 e 2002 esteve no centro da corrente interna do PT que profissionalizou uma máquina eleitoral poderosa, portanto, muito burocratizada. Foi o seu momento reformista. Entre 2002 e 2014 levou o PT a vencer quatro eleições seguidas, e no governo conduziu um governo de concertação social quase sem tensões com a classe dominante. Foi o seu momento presidencial.
Mas desde 2016, quando o núcleo mais forte da burguesia brasileira decidiu derrubar o governo Dilma, passou a ser perseguido como o inimigo público número um e enclausurado na prisão. Foi o seu momento mártir.
Lula é a candidatura da esquerda melhor colocada para derrotar Bolsonaro em um segundo turno em 2022. Melhor colocada porque pode vencer. E a força sempre conta muito. Lula Livre muda as condições da luta política, portanto, muda tudo. Essa influência repousa no apoio que mantém nos setores mais organizados da classe trabalhadora. Não se trata somente de uma audiência eleitoral. Ela se articula ainda com a presença de dezenas de milhares de militantes ativos nos sindicatos e movimentos populares. Ela está vertebrada na permanência do PT como o maior partido de esquerda.
O PT é um partido eleitoral, mas é preciso ter cuidado com comparações com o MAS na Bolívia, ou o peronismo na Argentina. O MAS boliviano é a expressão eleitoral de um arquipélago de movimentos sociais, mas não é um partido estruturado. O peronismo não é a rigor um partido, mas um movimento político com muitas alas públicas diferenciadas, e até concorrentes entre si, e não é independente da classe dominante. O PT é um partido reformista, mas é independente da burguesia.
Não é nada claro que venha a se repetir no Brasil o que ocorreu na Argentina, na Bolívia ou no Equador. No Equador, Lenin Moreno foi eleito com o apoio de Rafael Correa e depois, sob pressão imperialista, rompeu com a esquerda mais moderada. Na Argentina Cristina Kirchner aceitou ser candidata a vice-presidência. Na Bolívia, Luís Arce substituiu Evo Morales. Embora seja ainda imprevisível se Lula poderá recuperar os seus direitos políticos, não é plausível que, por dentro do PT, se avolume uma iniciativa para substituí-lo. Se Haddad voltar a ser candidato, será somente porque Lula não pode concorrer. A menos que Lula desista de concorrer.
Lula é um reformista moderado, evidentemente. A diferença entre reformistas e revolucionários não é entre quem é mais paciente ou mais impetuoso. A diferença não é entre quem é mais corajoso e quem é mais prudente. A diferença não é entre quem é mais irrequieto ou mais calmo. Não é entre quem tem mais pressa. A diferença não é temperamental. Tem muita gente equilibrada, tranquila, serena e até sossegada entre os revolucionários. E não faltam, entre os moderados, personalidades ansiosas, inquietas, audaciosas e até combativas.
A diferença não se concentra em torno da luta por reformas. Tanto reformistas como revolucionários lutam por reformas. Tampouco se reduz à disposição de luta política pelo poder. Todos ambicionam a conquista do poder. A questão é o programa.
O programa revolucionário é levar a luta por reformas até ao fim, ou seja, até à ruptura com o capitalismo. O reformista é limitado pela recusa de romper com a classe dominante, e a adaptação a um projeto de regulação do capitalismo.
Mas na tradição marxista os revolucionários, em condição minoritária fora de situações de crise revolucionária, nunca foram um obstáculo para que os partidos reformistas e as lideranças moderadas pudessem chegar ao poder por eleições. A palavra de ordem dos revolucionários para os reformistas sempre foi: “lutem pelo poder, rompam com a burguesia”.
Ainda prevalece na esquerda brasileira o desconhecimento de qual foi a tática central dos bolcheviques entre fevereiro e outubro de 1917.
A tática defendida por Lenin não foi somente a agitação de Pão, Paz e Terra. Foi, também, e até mais importante, a agitação de Todo o poder aos Soviets.
Mas os bolcheviques eram uma minoria nos Soviets antes de setembro de 1917. Quem detinha a maioria dos representantes eleitos eram trabalhadores, camponeses e soldados que seguiam os esseristas e os mencheviques. Estes partidos eram, também, maioria no governo provisório, liderado por Kerensky, mas em uma composição com representantes da classe dominante. Durante meses, em função da orientação aprovada com as Teses de Abril, os bolcheviques desafiavam os reformistas a romper com a burguesia. A palavra de ordem que agitavam era “Fora os ministros capitalistas do governo”. Desafiavam os reformistas a ir até o fim, e tomar o poder. Se o fizessem, os bolcheviques os apoiariam diante da contrarrevolução, embora sem entrar no governo. Seriam leais. Se quisermos, uma espécie de “geringonça”.
O nome com que esta tática formulada por Lenin passou para a história do marxismo é a luta pelo governo operário e camponês, tal como foi aprovada nos primeiros Congressos da Terceira Internacional. Seria um via transitória no caminho da ruptura socialista. Lenin não descartava, entre abril e julho de 1917 que, eventualmente, pudesse, efetivamente, acontecer, se Kerensky fosse deslocado, embora fosse muito cético. Essa foi a tática desenvolvida nos seus melhores momentos PC da Alemanha, no início dos anos vinte. Trotsky considerava muito improvável, mas manteve esta possibilidade no Programa de Transição de 1938.
Ela ainda é útil, ou mantém vigência quando pensamos a situação brasileira. Por isso não deveria haver dúvidas na esquerda sobre a importância da campanha Lula Livre. Ela é indivisível da luta por Fora Bolsonaro. Ela é uma alavanca para o programa que defende que a saída para a crise é a luta por um governo de esquerda.