Publicado originalmente no Opera Mundi
Por Carol Proner
Qualquer eleição presidencial nos Estados Unidos é evento de máxima repercussão internacional, mas as deste ano – realizadas nesta terça-feira (03/11) – são incomparáveis. E não apenas pelo escandaloso processo de conflito interno, as ameaças de judicialização e de violência nas ruas, que tornam os resultados imprevisíveis, mas pelos impactos que a nova administração (ou renovada) terão na geopolítica mundial: os fatores de ingerência de novo tipo que caracterizam os tempos atuais, o que alguns autores têm chamado de Segunda Guerra Fria.
E aqui aproveito para fazer uma homenagem ao nosso maior cientista político especializado nas relações bilaterais Brasil-Estados Unidos, o saudoso Luiz Alberto Moniz Bandeira que, se vivo estivesse, nos brindaria com análises precisas a respeito do significado da eleição de Biden/Kamala Harris ou da reeleição de Trump para o Brasil e para o mundo.
Podemos recorrer às suas últimas obras para entender, sob o aspecto da política externa, o que representam essas eleições. Há seis anos, Moniz Bandeira já demonstrava que, diferentemente da Guerra Fria do século XX, esta “nova” não se alimenta de ideologia, mas de interesses estratégicos dos EUA e que esse giro se dá a partir dos anos 90, momento em que os EUA passam a dar maior importância à Eurásia, região onde está a Ucrânia. Cito trecho de entrevista à Carta Capital: “Em 1994, o Departamento de Energia norte-americano identificou o Mar Cáspio, próximo da Ucrânia, como uma das maiores fontes de petróleo do globo. Uma baita descoberta para quem não sobrevive sem petróleo importado. E mais ainda porque a principal fonte conhecida, o Golfo Pérsico, é um caldeirão de antiamericanismo islâmico”.
Isso explica o esforço dos Estados Unidos para atrair governos de países da região do Cáucaso, alguns dos quais pertenciam à ex-URSS. Cito: “Washington fez isso inclusive mediante o envolvimento militar e uma política de regime change, ou seja, desestabilizando governos eleitos.”
Agora bem, e pensando no Brasil, um fator que merece ser destacado como determinante para o aumento da ingerência sobre o Brasil nos últimos anos foi a descoberta dos campos de petróleo do pré-sal em 2006 e a ulterior designação da empresa estatal brasileira, a Petrobras, como a operadora da exploração dessa riqueza.
Os compromissos de vinculação da riqueza do petróleo com um amplo projeto sócio educacional do país, ao mesmo tempo em que o Brasil buscava ampliar as relações internacionais para outros continentes e dentro de outros desenhos institucionais, como no caso do grupo dos BRICS, foram elementos que chocavam-se frontalmente com os interesses dos Estados Unidos.
No ano de 2010, a partir das denúncias envolvendo Edward Snowden e a rede Wikileaks, documentos revelaram a espionagem da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, a NSA, tendo como alvo tecnologia envolvendo a exploração em alta profundidade na camada pré-sal. Governo Obama!
Destaque-se que o furto de informações sigilosas e estratégicas da Petrobras ocorreu no ano de 2008, ou seja, dois anos após as descobertas das reservas petrolíferas do pré-sal e no mesmo ano em que os Estados Unidos reativaram a Quarta Frota Naval de monitoramento do Atlântico Sul. Um ano depois, em 2009, o Departamento de Justiça dos EUA, agentes do FBI e outras agências intensificavam a colaboração em matéria penal com integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal brasileira para tratar de temas ligados ao combate à corrupção transnacional e à lavagem de dinheiro.
Ora, pensando nos nossos interesses, a nossa Petrobras está como está graças à essa ingerência. Então, quando fazemos cálculos a respeito do menos pior para os nossos interesses – e entendo que a identificação de Jair Bolsonaro com Trump suscite uma fervorosa torcida pró-Biden – devemos estar preparados para um cenário difícil, de forte inteligência estratégica a favor dos interesses de uma potência decadente que, como um animal ferido, fará de tudo para sobreviver.
Nesse sentido, o enfraquecimento de Jair Bolsonaro deveria depender menos da derrota de Trump e mais de nossa própria capacidade de defender nossos interesses. A soberania pode ser defendida aqui dentro, usando dos instrumentos democráticos e repudiando as alianças perversas que conduzem o Brasil ao precipício como projeto de nação.
(*) Carol Proner – Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).