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Deixa eu contar uma história sobre racismo:
Aos 13 anos tive uma fase meio “delinquente. Depois de jogar futebol com amigos fomos para um supermercado roubar. Desarmados, claro. Pegar, esconder no short e sair.
Eu e mais três. Todos brancos, menos um.
Quem mora em Bento Ribeiro e adjacências conhece o supermercado Extra na João Vicente, quase Marechal Hermes.
Antes era Sendas.
Entramos, cada um foi para um lado. Peguei um saco de um chiclete vagabundo que gostava.
Quando ia saindo, lerdo, deixei cair. Bateu pânico.
O segurança viu.
Ele simplesmente esperou eu correr. Quando olhei para trás, estava pegando o produto no chão com um sorriso no canto da boca.
Fui pra casa aliviado. Cheguei, almocei e voltei pra rua.
Ao reencontrar os colegas da “aventura, faltava um.
O negro.
“Cadê ele?”
“Ficou lá”
“Como?”
“Ele foi burro, entrou sem camisa, todo sujo, descalço e quis sair com um chinelo branquinho”
“E o que aconteceu?”
“Pegaram e levaram lá pra dentro”
“Ainda não voltou?”
“Não, a mãe dele está perguntando, preocupada”.
Fomos na Sendas por volta de 11h. Ele deve ter sido pego às 11h20, por aí.
Voltou pra casa às 18h. O mercado tinha fechado às 13h.
Chegou ensanguentado, na pele e no short. Totalmente desorientado, sem coordenar uma frase.
Não sabia explicar o que aconteceu.
Depois um vizinho que conhecia um dos seguranças descobriu:
Ele foi SURRADO e ESTUPRADO. Por HORAS.
Só não mataram porque havia testemunhas da presença dele no supermercado.
Nós, brancos, aparentemente de classe média, que entramos com ele.
Eu tinha 13 anos, ele 14.
Era 1986.
Eu, que também fui flagrado roubando, estou aqui, contando essa história?
Ele?
Enlouqueceu, viveu anos em sanatórios e hoje perambula pelas ruas, vivendo da caridade de familiares e conhecidos. Aos 48 anos.
Por um chinelo. Por ser preto.
.x.x.x.x.
André Rocha é jornalista, colunista do Uol Esporte. Coautor de “Flamengo 1981” e “É Tetra!”