Publicado originalmente no site Rede Brasil Atual (RBA)
POR CLARA ASSUNÇÃO
De Manuela D’Ávila e Marília Arraes a Flávia Lancha (PSD), em Franca (SP), candidatas de diferentes espectros políticos chegam ao 2º turno com algo em comum: sofrem violência política como candidatas e são atacadas justamente por serem mulheres.
Esse é o caso da candidata à prefeita do Recife, Marília Arraes (PT). Ao se dizer “acostumada” às ofensas disparadas por um partido opositor nestas eleições municipais, o PSB, ela lembra um episódio que a marcou, assim que rompeu com a legenda e o primo Eduardo Campos, em 2014. Uma cadela encontrada na rua por militantes da sigla fora batizada pelo comitê central do PSB da cidade com seu nome.
O escárnio à época foi justificado pelos correligionários como “gesto brincalhão” em relação à então vereadora, que semanas antes fazia críticas abertas à presidência nacional da legenda. Segundo eles, esta seria uma “homenagem”. Semelhante a quando integrantes do mesmo comitê, em 2010, apelidaram, “como forma de apoio”, uma cachorra com o nome de Dilma Rousseff, que se lançava à presidência da República pelo PT.
Marília recordou novamente o ataque no último dia 19 de novembro, quando Recife amanheceu com lambe-lambes espalhados pelos muros da cidade com a imagem dela e da ex-presidenta numa versão “demonizante”. A candidata, que agora disputa o Executivo municipal contra o filho de Eduardo Campos, João Campos (PSB), acusou o partido adversário pelas ofensas e reforçou que resistiria. “Estou acostumada a essas fake news.”
O lobby do batom
Buscar se adaptar a condições adversas e absorver ataques misóginos é uma rotina para mulheres que têm vivência política. A primeira vez que a advogada, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora associada do Instituto Alziras, Roberta Eugênio, observou esse tipo de “estratégia” foi quando começou a atuar no tema de violência política de gênero e relações étnico-raciais.
Em uma de suas primeiras pesquisas, entrevistou a pedagoga e militante histórica feminista Schuma Shumaher. Queria entender se a violência política contra a mulher já era endereçada, ainda que com outro nome, ao movimento que lutava para emplacar direitos civis, sociais e econômicos a este segmento na Assembleia Constituinte de 1987. Assediadas e descredibilizadas, antes de entrarem para a história ao garantir igualdade de direitos na Carta Magna, elas ficaram conhecidas como o “lobby do batom”. O que seria uma chacota feita por parlamentares homens acabou dando nome à luta.
“Que curioso. É claro que vocês está me falando de uma coisa que eu vi. E vi minhas companheiras experimentarem, deputadas, senadoras”, relembra a pesquisadora sobre a resposta de Schuma. “E ela falou da Ideli Salvatti, contou casos, mas disse que isso (violência política de gênero) não era um tema. Na verdade, a violência política seguiu sem ser um tema até praticamente agora”, explica Roberta. “O que essas mulheres faziam, e avalio que é absolutamente compreensível e que se reforça por conta da sub-representação, era tentar pegar esses ataques e transformar em algo que elas passassem por cima.”
Atacadas por serem mulheres
“Conto essa história porque acho que essa é uma estratégia que muitas mulheres utilizaram na política até quase agora. Se você me ataca, pego esse ataque, como esse caso da Marília, vou passar por cima ou tentar reverter isso. Mas é importante, quando firmamos essa memória, entender que a sub-representação (das mulheres na política) ajuda a manter a violência política”, pondera.
As eleições municipais de 2020 já estão marcadas pelo recorde de participação feminina. Ao todo, 57 cidades ainda aguardam o resultado, mas em 38 delas apenas homens concorrem. Ponta Grossa, no Paraná, é o único município em que a disputa está entre duas candidatas, Mabel Castro (PSC) e Professora Elizabeth (PSD).
As candidatas em todo o Brasil, da direita à esquerda, encerram suas campanhas com algo em comum: em maior ou menor grau, foram atacadas por serem mulheres. Uma violência política de gênero que se acirrou no segundo turno, como mostra monitoramento da Revista AzMina e do InternetLab a partir de comentários direcionados às postulantes nas redes sociais. As agressões são verbais, psicológicas e até econômicas – quando os recursos partidários não são distribuídos de forma equitativa se comparados aos candidatos homens.
“Como a violência política de gênero pode ser entendida como uma ferramenta que privilegia o espaço político, público e de poder para os homens, quanto mais perto essas mulheres se aproximam da vitória eleitoral, mais essa violência se intensifica”, aponta Roberta Eugênio.
O segundo turno delas
Nesta semana, por exemplo, Elisa Araújo (Solidariedade) que chegou ao segundo turno em primeiro lugar, com 36,25% dos votos, em Uberaba, Minas Gerais, acusou a equipe de seu adversário Tony Carlos (PTB) de impulsionar vídeos e mensagens de ódio na internet contra ela. As postagens foram seguidas de comentários como “quem é essa cachorrinha?” até “essa menininha vai para a cozinha lavar louça”.
Em Franca, interior de São Paulo, a candidata Flávia Lancha (PSD), que disputa a prefeitura contra Alexandre Ferreira (MDB), constantemente vem usando as redes sociais para reiterar que não fechará as igrejas, como sugerem as fake news contra ela. Flávia também é acusada de que, se eleita, quem administrará a cidade não será ela, mas seu marido.
Delegada Danielle (Cidadania), que concorre em Aracaju, também não é contestada, de forma geral, por suas propostas. Seus adversários e os comentários virtuais disparados contra ela a criticam por ser uma “mulher agressiva e arrogante”. Aspectos pessoais, da aparência à personalidade, e adjetivos como “mentirosa”, “hipócrita”, “doente”, “doida”, “safada”, “bandida”, “lixo” e “despreparada” são frequentes, segundo levantamento do InternetLab, contra as candidatas Paula Mascarenhas (PSDB) em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e Cristiane Lopes (PP), em Porto Velho.
Violência para negar a política
Isso porque, de acordo com a pesquisadora do Instituto Alziras, contra mulheres candidatas não pesa o conteúdo profissional. “Isso sempre vai ser negado porque é uma forma de negar a política delas.” A organização, que atua para aumentar a participação feminina, mostrou a partir do perfil de 45% das 649 prefeitas eleitas em 2016 que suas experiências em gestão pública eram maiores que as de prefeitos homens. Ao menos 71% delas tinham ensino superior, contra 50% deles. Mesmo assim, as mulheres ocupavam 12% do total de prefeituras do país e apenas 3% eram mulheres negras.
“Esses xingamentos específicos que podem parecer muito leves e banais, pouco violentos, mas se comunicam muito com o imaginário da sociedade em relação às mulheres”, observa. “Elas são sempre atacadas como inadequadas. E aí não importa o que façam. Se estiverem sendo mais ríspidas, duras e com argumentos fortes, são tratadas como arrogantes, loucas. Se falarem de modo mais suave, se entende como expressão de feminilidade e pouca força ou uma essencialização do que é ser mulher. Aí se fala em ‘fazer política com afeto’, mas essa ‘política com afeto’ é uma forma de essencializar para tirar dela o reconhecimento como boa gestora.”
Ataques a Marília Arraes
Em 2018, nas eleições nacionais, esse modo de hostilizar a participação de mulheres tornou-se “ferramenta de marketing político” utilizado pela maioria dos nomes ligados à ascensão de Jair Bolsonaro. “Nós vimos candidatos que não eram conhecidos e fizeram seus nomes a partir de discursos de ódio contra as mulheres. Inclusive tentando atacar a figura e o nome de Marielle Franco”, lembra Roberta.
A advogada e estudiosa do tema ressalta que o emprego da discriminação está longe de ser uma característica somente do campo conservador, em especial de extrema direita. E o único segundo turno entre dois partidos considerados do campo progressista prova isso. Na semana do dia 19, a candidata do PT foi retratada em panfletos apócrifos que associavam sua imagem à “legalização das drogas” e à “ideologia de gênero”. Outras fake news e distorções, como ter atuado para “tirar a Bíblia da Câmara Municipal” e “vetar o perdão às igrejas”, foram divulgadas. As mesmas peças apontam seu partido como “perseguidor de cristãos” em todo o país.
As candidatas do PT
A tentativa de intimidar os eleitores evangélicos falando em “perseguição” também está presente nos ataques contra as candidaturas mineiras de Marília Campos (PT), em Contagem, e Margarida Salomão (PT), em Juiz de Fora, onde o tom do antipetismo se mistura à misoginia. A relação, para Roberta, atinge o que pode ser o “centro” da violência de gênero para entender como ela desumaniza as mulheres.
“Essa comparação demonstra que hoje estamos debatendo a violência contra a mulher na política. Mas de modo essencial estamos debatendo a discriminação contra a mulher na sociedade. Por isso é importante que façamos esse debate como um todo no Brasil. Para que a gente entenda que a violência política de gênero utiliza de uma estrutura específica, que nega sob qualquer signo o espaço político para as mulheres. Não importa que padrões elas cumpram ou mesmo qual espectro político representem. Os exemplos são muito importantes para que a gente materialize, mas mais importante do que os exemplos é entender como isso se organiza de modo estrutural”, propõe a pesquisadora.
“Porque, caso contrário, quando uma mulher denuncia, vai parecer que ela está falando sobre uma perseguição contra ela. Mas a verdade é que esse ataque é contra todas as mulheres. Inclusive se reforça (o ataque) para que ela fique ali sozinha (na política).”
Loreny (Cidadania), que disputa o segundo turno em Taubaté, interior paulista, além de ser reduzida à figura de “menina” por sua idade – 29 anos –, também é atacada associando-se a ela o que chamam de “ideologia de gênero para as nossas criancinhas”, banheiro unissex nas escolas e liberação do aborto e de drogas.
Manuela D’Ávila: principal alvo
Os termos fazem lembrar da violência política que sofre a candidata mais atacada desde antes do processo eleitoral. Manuela D’Ávila (PCdoB), nestes últimos dias de campanha eleitoral em Porto Alegre, é a postulante que mais recebeu ofensas no Twitter e no Instagram. Foi alvo de 90% dos ataques. Nesta sexta-feira (27), ela denunciou pelas mesmas redes sociais o uso de caminhões de som propagando pela capital gaúcha mentiras de que “destruiria as igrejas” e as “pessoas comeriam cachorros” em sua eventual vitória.
As fake news contra a candidata dão ênfase a suas características físicas. Além da alusão ao termo “comunista” usado como ofensa, conforme mostra o monitoramento do InternetLab e da Revista AzMina. Xingamentos como “lixo”, “bandida” e “vagabunda” figuram no topo das ofensas mais usadas. “Abortista” também é usado de forma recorrente.
A violência política de gênero contra Manuela não só está exposta no meio virtual como foi filmada e reproduzida em rede aberta. Durante um debate no primeiro turno, o candidato Rodrigo Maroni (Pros) ignorou seu tempo de apresentar propostas na Rádio Gaúcha para agredir a adversária do PCdoB, dizendo que ela “mentia e dissimulava”. “Tu é patricinha mimada, poderia estar comprando bolsa no shopping. Se eu fosse abrir a boca, eu não acabaria com a carreira, mas com tua vida, Manuela”, insultou Maroni. “Eu queria só reafirmar, não contei 5% da Manuela. Só não conto mais em consideração a tua filha.”
Problema de todas
O que explica a ofensiva, para Roberta, está longe de ser a onda anti-esquerda. O candidato Guilherme Boulos (Psol), que disputa a prefeitura de São Paulo, ou ainda Edmilson Rodrigues (Psol), que também concorre no segundo turno em Belém, são fake news ligadas a questões como patrimônio ou propostas. A aparência e temas morais não são destaque nas mentiras disseminadas contra ambos.
“Nessa comparação entre Manuela e Boulos se expõe como ela não pode ter, inclusive, nem direito à escolha de uma linha política. Você consegue ver entre adversários, inclusive de campos opostos, algum tipo de jogo limpo quando estão em campos distintos e debatem ideias. Agora, quando se colocam mulheres nesse lugar há uma tentativa de descredenciar o discurso delas sob toda e qualquer justificativa”, observa a advogada.
“Nunca se debatem os projetos que fez, suas ações. E é por isso que a violência política pode ser entendida como uma problema que não é apenas da Manuela, mas de todas nós. Porque isso cria uma falta de memória política sobre a gestão dessas mulheres. Quem são as grandes gestoras públicas no Brasil?”, questiona Roberta. “Temos um problema de memória mesmo coletiva sobre essas ações e a importância das mulheres para a política no país. A Benedita (da Silva) é um outro exemplo no Rio de Janeiro. É uma parlamentar com uma longa trajetória, mas toda vez que é atacada é por questões de gênero, raça ou de classe, por ser oriunda da favela”, compara.
Feminicídio
Ao menos sete mulheres candidatas foram assassinadas durante as eleições deste ano. O número é inferior ao total de 79 postulantes do sexo masculino que morreram até o 20 de novembro em decorrência da violência política, de acordo com relatório do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. Mas, ao contrário dos homens, quatro delas perderam a vida por violência do próprio companheiro. Entre elas, a candidata a prefeita de Curralinho, no Pará, Leila Arruda (PT), morta a facadas e pauladas. O crime teria sido cometido pelo ex-marido.
Solange Freitas (PSDB), que concorre no segundo turno de São Vicente, município da Baixada Santista, chegou a ter o carro alvejado por cinco tiros. Ninguém se feriu no atentado que, segundo a própria candidata, atuou “contra a democracia e as mulheres na política”.
Falar da violência para enfrentá-la
Apesar da escalada da violência política de gênero, Roberta Eugênio, que foi assessora jurídica parlamentar no mandato da vereadora carioca Marielle Franco, costuma lembrar de uma fala de Manuela D’Ávila durante uma mesa de debate que dividiu com ela. Foi em 2018, durante um festival em São Paulo que tratava sobre o tema da violência política para falar também em superação.
A então candidata à vice-presidência na chapa de Fernando Haddad (PT) destacava que aquela campanha, apesar dos ataques, marcava também a primeira vez em que era acolhida pelas mulheres, e até a própria mídia, no reconhecimento da violência política de gênero. “O que acompanhamos hoje não é necessariamente um quadro mais violento do que outrora já aconteceu. É uma mobilização que vem tentando desnaturalizar essa violência que faz parte da nossa política. E que prejudica o acesso de mulheres e a sua permanência, tanto quanto interfere nas próprias características da democracia e da diversidade”, ressalta a advogada e pesquisadora.
“A gente quer que seja um ambiente de tolerância zero à violência. Esse ambiente começa a ser construído quando a gente vocaliza que ela não é normal. A forma como esse debate vem ganhando força na sociedade é também uma oportunidade de possibilitar que essa violência seja enfrentada”, conclui Roberta Eugênio.