Por Hellen Alves
‘Eu não sabia que existiam escritores e escritoras vivos, achava que era coisa do passado, dos clássicos, sabe?”, lembra o poeta Lucas Lins, 22, morador da maior Cohab da América Latina, em Cidade Tiradentes.
Lucas viralizou nas redes sociais com um vídeo-poema no qual conta as vivências dos moradores de Cidade Tiradentes, na Zona Leste de São Paulo; e declara seu apoio em Guilherme Boulos (PSOL), candidato à prefeitura.
“Vamos se atentar quebrada, os caras tão no governo a milianos, são os mesmo de sempre (…) Vote no candidato que mora na periferia e a melhor prefeita que São Paulo teve”, diz Lucas.
Veja o vídeo-poema abaixo:
O poeta Lucas Lins, da Cidade Tiradentes, leva a gente pra conhecer a realidade da quebrada através da sua poesia. #ViraSP50 #Boulos50
Gabinete do Amor SPCréditos
Texto: Lucas Lins
Gravação
Márcio Schimming
Denis Davi (drone)Edição: Márcio Schimming e Patrícia Fávaro
Produção: Igor Santos
Sound Design e mixagem: Leonardo Lima
Direção geral: Rodrigo Febronio
Publicado por Guilherme Boulos 50 em Quarta-feira, 25 de novembro de 2020
“Racionais MC’s cantou ‘Periferia é periferia em qualquer lugar’, os dilemas que contei no vídeo que produzimos, são casos que acontecem em Cidade Tiradentes, mas a realidade que afeta várias quebradas, acredito que a popularidade do vídeo veio por identificação”, afirma Lucas.
Ele conta que o vídeo-poema foi feito de forma voluntária e considera uma honra ter recebido o convite da equipe de comunicação da campanha de Boulos.
Lucas começou a escrever poesia aos 16 anos, mas sempre gostou de textos e de música. Seu primeiro poema chamado ‘Primavera (A beleza e a dor)’ foi escrita para participação em um sarau de sua escola e inspirado por um grafite feito na Avenida Aricanduva. “Eu fiz esse paralelo entre a senhora a quem chamei de Vera, e a beleza da primavera”, conta.
O jovem poeta teve o apoio de sua família, principalmente de sua mãe, mas relata que, por ser ‘periferia’, precisava de um ‘trampo’ que desse estabilidade para poder produzir as poesias com calma. “Eu sempre conciliei o trampo da poesia com um trampo ‘formal’, trabalhei em call center durante três anos, depois fui jovem monitor cultural, e hoje sou estagiário de redação, então sempre tive uma ‘tranquilidade financeira’, para produzir minhas paradas sem uma cobrança”, explica.
Lucas é autor dos livros Remando Contra a Maré, de 2016; e Declínio & Esplendor da Bicicleta, de 2018. Ambos possuem temáticas semelhantes abordando as percepções de um jovem periférico, recém completado maioridade, dúvidas sobre o futuro, crises de fé e o divórcio de seus pais.
“Remando contra a Maré foi uma reunião desses meus primeiros escritos, eu mesmo diagramei, fiz a capa, é um trabalho bem amador, mas já pulsava ali a minha iniciativa de fazer as coisas por mim mesmo. Emicida, é uma das minhas referências, essa coisa de produzir um álbum e vender por ele mesmo”, relata Lucas.
Ele conta também que foi através das músicas do rapper que ele conheceu Marcelino Freire, escritor brasileiro; e assim participou de uma oficina de escrita realizada por Freire, o que ajudou Lucas a se aprofundar na escrita, trazendo identidade aos seus poemas: “Marcelino foi divisor de águas na minha trajetória, me levando para grandes festivais literários”.
Em 2019, ele participou do festival Uni Duni Ler, em Brasília, para uma mesa de conversa com estudantes do Instituto Federal de São Sebastião ao lado de Alessandra Roscoe e Marcelino Freire. “Foi a primeira vez que peguei um avião, me hospedei nos últimos andares de um hotel oficial de copa do mundo. Tudo isso pago pela poesia”, diz Lucas.
No mesmo ano, também participou da Flim, Festa Literomusical de São José dos Campos, na qual foi selecionado para fazer uma residência literária junto a 5 escritores e escritoras.
No período de residência, foi produzido um fanzine sobre as histórias do antigo sanatório que ficava no Parque Vicentina Aranha, local onde aconteceu o festival. O material produzido foi apresentado na abertura da mesa do autor moçambicano Mia Couto, autor de ‘Terra Sonâmbula’, para quase 3 mil pessoas.
Com a pandemia de covid-19 e as medidas de isolamento, Lucas se desafiou a fazer um exercício diário de escrita intitulado Poesia Pra Matar o Corona.
“Decidi que escrever diariamente seria minha meta para a quarentena, para conseguir cumprir a promessa, decidi postar em minhas redes sociais e, consequentemente, as pessoas aguardariam a sequência da série, isso me deu disciplina para conseguir cumprir meu objetivo durante 70 dias consecutivos”, explica.
Lucas comenta que, no meio deste processo criativo, recebeu convites para publicar o livro de forma física e provavelmente nos próximos meses Poesia Pra Matar o Corona já poderá ser lido no papel.
Poesia Pra Matar o Corona #1
vejo máscara branca
de quem esconde a bolsa
quando eu respiro
cê diz que se dá bem com crioulo
metade dos seus amigos são da raça
faz até samba com sotaque italiano
toca curioso na minha pele escura
cabelo da moda e no meu beiço largo
dá tapinha nas costas depois lava
no restaurante australiano pergunta se meu prato é comercial
não sou funcionário da tua loja
tua máscara branca nega água no verão de São Paulo
a noite mete o bico no corote sabor morango
e posa pra foto na frente de mendigo
a quarentena legítima nosso isolamento
Nessa série composto por 70 poemas é possível ver as dificuldades impostas pelo isolamento: a distância necessária de amigos e familiares e também a dificuldade enfrentada por muitas pessoas que não podem ‘abraçar a recomendação de ficar em casa’, pois precisar ir à luta para conquistar o sustento de suas famílias.
Lucas Lins utiliza suas vivências para construir uma ponte com seus leitores por meio da identificação, seu vídeo declarando apoio em Boulos não foi o primeiro trabalho seu a bombar nas redes.
Em abril de 2019, o vídeo-poema Mc Donald’s na Quebrada também viralizou ao contar a experiência da população de Cidade Tiradentes com a inauguração de um quiosque do Mc Donalds no pátio do supermercado Negreiros a 37 Km da Sé.
Veja abaixo:
Abriu um Mc Donald’s na Quebrada
duzentas mil pessoas em um bairro
trinta e sete quilômetros da sé
aqui só tem duas saídas
numa delas está estampado
SUPERMERCADO NEGREIROS
-próximo ao cabaré dos radiadores
é privilégio discutir história-
no pátio do supermercado entre os seis quiosques instalados
um serve churrasquinho;
outro é um cabeleireiro,
um carrinho vende milho, refrigerante e o onipresente pão de queijo.
uma banca conserta celulares
e um chaveiro.
o sexto é o Mc Donalds.
nāo precisei dar oito e sessenta pro joāo doria
o ponto turístico da ragueb chonfi
tem na quinta avenida de nova iorque
larissa arrastou sua avó e as varizes
pedro churrasqueiro nunca viu tanta carne sorrindo
maria do carrinho de milho diz que parecia março em patos de minas
o motorista da 30-64 toma mc flurry dirigindo
Abriu um mc donalds na quebrada
saiu no el país
no hypeness
na veja
no g1
no whatsapp
custa quinze reais pra cortar o cabelo e tirar uma selfie abaixo do M
é apenas quiosque de casca e massa
nem vende lanche com pāo
mas crianças do pedra branca até cabulam aula
Abriu um Mc Donalds na quebrada.
Essa poesia foi escrita para um exercício proposto na oficina do Marcelino, na qual foi dado a Lucas o desafio de escrever sobre “gula”, sem citar a palavra diretamente. Ao ler sua obra para a turma da oficina, um outro aluno chamado Rodrigo Febrônio sugeriu que eles gravassem um vídeo.
“Foi surpreende a repercussão, de fato eu não esperava, na mesma semana que lançamos o vídeo, saímos na Uol, lembro que eu tava no call center e alguém abriu o site e me viu. Parou toda a operação pra me aplaudir, foi um momento bonito. E até hoje as pessoas me reconhecem por essa poesia”, conta Lucas.
Leia abaixo a poesia que deu início a trajetória do poeta Lucas:
Primavera (A beleza e a dor)
É primavera!
Mas não há flores,
É dona de casa, dona Vera…
Comum, sofre diariamente suas dores.
Queria ter formação,
Mas perdeu chance no sertão.
De onde ela veio,
Trabalhar cedo é tradição.
Primavera, dádiva da natureza!
Vera pobre, cheia de tristeza,
Castigada pela vida dura, seu sorriso é franco.
Sorriso que esconde uma alma em prantos… As folhas caem no ritmo de suas lágrimas,
Lagrimas de choro e esperança…
Lagrimas de quem sozinha,
Deve cuidar das cinco crianças.
Primavera, traga paz a essa alma sofrida!
Traga a flor da fé, a flor da vida,
Flor para o olfato encantar,
Flor para alegrar seu lar.
Que faça a guerra se afastar,
Vera pobre está cansada,
De ser castiga pela sua cor.
Fé, flor da esperança e amor… Vera pouco dorme, não pode descansar
deitada em noites frias,
Vera sabe o que é sonhar
Sente saudade dos bons dias
Quando a primavera trazia alegria
Era sinônimo de frutas maduras, direto da mangabeira
Hoje o que restou?
Mangas recolhidas no fim de feira.
Assim também vem os legumes e as verduras
Vera faz a mistura, essas cores
Se não vem de cima do balcão são nulas
Quando já perderam seus sabores
É tudo que Vera tem: O que sobra é dela,
vegetais podres.
Pois migalhas não são flores
No quilombo chamado favela
Vejo uma Vera onde quer que eu vá,
Presa na rotina, com coração vazio
Hora vejo aqui, hora vejo lá
Batalhando dias a fio
Essas “Veras”, lutam na solidão
E encontram a sua flor
Apenas em cima do próprio caixão.