Como uma flor de lótus, capaz de crescer do lodo pantanoso e imundo e alçar-se sobre a sua superfície para florescer em plena exuberância, André Luiz Abreu de Souza, conhecido como André Constantine, eleva-se sem concessões sob o destino violento e incontornável que uma favela do Rio de Janeiro impõe às vidas negras. E, junto com ele e contra todas os revezes, insurge um movimento inédito de articulação nacional dos territórios de favelas no Brasil, redefinindo, à revelia das lógicas aprovadas, a luta de classes, a luta antirracista, anticapitalista e descolonizadora.
“A Favela não se cala”, criado por Constantine em 2012 e que agora se amplia no “Movimento Nacional das Favela e Periferias” (MNFP), não é um movimento cooptado por ONGs, instituições, partidos políticos, academia ou tink-tanks benfeitores. É uma luta emancipatória dos territórios das favelas a partir de suas métrica e realidade próprias, e contra as violências fundadoras e estruturantes da sociedade brasileira.
A força audaciosa e inspiradora de Constantine não é um fim em si mesmo, nem simbolismo, ou sem riscos. Ela tem aspectos tão reais como a miséria, a exclusão, a gentrificação e expulsão, o tráfico, a violência policial, as milícias e as contínuas ameaças de morte que ele e companheiros sofrem por seu trabalho. Ao mesmo tempo, essa luta reacende os aspectos mais intangíveis e dolorosos. Constantine quer falar à favela sobre a percepção que o individuo tem de si mesmo. Aquela que o racismo operado na lógica de um apartheid de classes legitima dentro de cada um, do discriminado e do que discrimina. E ele jura a desobediência necessária do lugar social que subjuga historicamente o negro no Brasil.
Quem é André Constantine?
Eu nasci e vivo até os dias atuais nas favelas no Chapéu Mangueira e da Babilônia, no Rio de Janeiro. Meus pais tinham problemas de convivência. Meu pai batia na minha mãe. Isso mexeu muito com meu psicológico. Eu fui uma pessoa agressiva durante muito tempo da minha vida, porque eu aprendi a violência dentro de casa, e levei esta violência para fora. Eu acabei interpretando que tudo se resolvia com violência. Isso durou um bom tempo da minha vida. Eu fui torcida organizada, baile de briga de corredor. Era uma forma de extravasar toda aquela violência que eu presenciava em casa. Meu pai trabalhava na rede hoteleira, até que ele sai e se envolve-se com o mundo do varejo de drogas. Ele é assassinado em 1992. Isso também mexeu muito comigo, e é nesta época que eu entrei na Igreja Universal do Reino de Deus. Atualmente, eu moro com a minha mãe e com a minha filha Marcela de 13 anos, fruto do meu primeiro casamento. Recentemente tive um filho, Malcom Lumumba, e hoje eu me divido um pouco nestas duas casas.
De acordo com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), negros somam 75,9% dos brasileiros assassinados na ultima década.
Qual foi a primeira experiência de discriminação racial da qual você se lembra?
Foi ainda criança, na escola. Hoje o que tradicionalmente é chamado de bullying, é racismo. O racismo é chamado de bullying de forma incorreta. Eu recebia vários apelidos de criança na escola; beiço de Mula, cabelo de Bombril, nariz de batata. Mas eu não conseguia identificar isso como racismo, eu achava que era mais uma zoação dos meus amigos. Mas isso gera um estrago enorme na vida da criança negra, porque ela cresce com um complexo de inferioridade e achando-se feia, e que as características étnicas suas, são feias. Isso tem um efeito devastador na vida das crianças negras.
Como é crescer como jovem negro numa favela do Rio de Janeiro?
Destaque: “Crescer como jovem negro dentro de uma favela é como crescer como se você tivesse um alvo no seu peito e nas suas costas. Toda favela é um campo de extermínio do povo negro.”
Acho que toda essa juventude negra, que se encontra aqui nas facções no Rio de Janeiro, são jovens que foram forjados ao crime. Todo negro favelado é forjado ao crime. Imagine você nascer no berço da miséria, numa casa em que falta tudo, em uma família desestruturada, onde a mãe é alcoólatra, o pai encontra-se preso. Crescer em um local onde as oportunidades são raríssimas, e nesse mesmo local você visualiza esses varejistas de drogas todos os dias, com cordão de ouro, com mulheres. É algo muito atrativo para esses jovens, que vivem no berço da miséria, com famílias desestruturadas. Toda favela é um campo de extermínio do povo negro. Pegue a sua pá, cave sua trincheira, não existe Lista de Schindler com seu nome. Não existe salvação neste campo de extermínio. Essa e a realidade de todos negros e negras, que moram num campo de favela. Lugar esse, que é construído dentro de um processo de exclusão desta sociedade racista, deste país que nos odeia.
Como você entrou no ativismo político?
Desde a infância, eu sempre fui uma criança muito revoltada e tinha o hábito de questionar tudo, e sempre tive a sensibilidade para a questão da desigualdade social. Tanto que eu escrevi uma musica, ainda adolescente, que minha mãe guardou para minha surpresa, chamada “salarinho de merda”. Eu tenho esse hábito de escrever música. Ainda sem entender nada sobre a mais-valia, sem ter ainda lido Marx, eu compreendia que o trabalhador no Brasil era um explorado. Eu entrei na militância para lutar pelo direito à moradia aqui no Rio de Janeiro através do Conselho Popular formado pela Defensoria Pública, a Pastoral de Favelas, e uma série de lideranças de favelas. Quando o conselho popular acaba, eu tive a ideia de criar um movimento para ocupar esse lugar. Nós criamos e idealizamos com outros companheiros o movimento “A Favela não se cala”. A sua trajetória e na luta pelo moradia, e depois contra a violência estatal que a gente sofre pelo braço armado do Estado que é a Polícia Militar. Nós passamos a ser um dos movimentos que mais enfrentou a Polícia Militar e a militarização das favelas, as chamadas Unidades Pacificadoras de Polícia.
Em que consistem suas lutas e sua militância nas favelas do Rio?
Nós do MNFP temos duas frentes de ação; uma frente institucional, que não pode ser abandonada. Mas nós compreendemos que ela tem e deve estar a serviço da construção do socialismo.
Hoje, nós começamos a construir um movimento de articulação das favelas e periferias a nível nacional, o Movimento Nacional das Favela e Periferias. Quem trouxe essa ideia ate a mim foi o professor Heitor Cláudio L. Silva, do “Combate pelo Socialismo”, e eu aceitei esse desafio. Iniciamos esta construção, que tem cerca de sete meses. Nossa intenção é dialogar com as favelas de todos os Estados do Brasil e destes encontros realizar um seminário presencial para construção do nosso programa com nosso corpo técnico de juristas, arquitetos, engenheiros, academia, os policias antifacistas e parlamentares. Esse programa será levado ao Congresso Nacional para que esse programa se torne uma política de Estado. O que as favelas precisam, e os bairros periféricos, é de uma política de Estado. Não precisamos e não comportam politicas populistas de governos pontuais. Colocar as favelas e periferias no orçamento do municípios, dos Estados e da União é a nossa luta do MNFP.
Este movimento é também para que nos possamos organizar a classe trabalhadora para construir o socialismo no Brasil e destruir o capitalismo. Parafraseando Malcom X, não existe capitalismo sem racismo. Nós não acreditamos que iremos conseguir construir o socialismo pela eleição burguesa, e iremos organizar a classe trabalhadora. Esse é nosso principal intuito com os comitês, cada favela vai ter um comitê para elevar a consciência de classe do trabalhadora que vive nestes territórios.
Como o movimento se organiza, sobrevive, e é financiado?
E uma vez por mês nos íamos a uma favela apresentar o movimentos, conversar com os moradores e no final a gente rodava o chapéu. Era assim que o movimento conseguia recursos financeiros para poder prosseguir. E nos queremos também manter a nossa autonomia. Não queremos financiamento de nenhum partido, de uma outra instituição.
No MNFP, cada integrante tem uma quantia mensal para fazer para o movimento que é de 30 reais, e agora estou fazendo esta rede internacional para a captação de recursos.
A sua luta consiste, em grande parte, emancipar homens e mulheres, que são historicamente oprimidos pelo Estado, pela sociedade, pelos traficantes e milícias sanguinárias do RJ. Como é possível conscientizar pessoas neste contexto de total opressão, onde a luta pela sobrevivência física é urgente?
“A emancipação do povo negro que vive nos territórios de favela vai passar por um processo de descolonização mental.”
A emancipação do povo negro que vive nos territórios de favela vai passar por um processo de descolonização mental. Porque, no processo escravagista que ocorreu no Brasil de quase 400 anos, ocorreu um processo de colonização mental. Patrice Lumumba já falava, o mais difícil não vai ser libertar o Congo do colonialismo, mas vai ser libertar o Congo da colonização mental. É importante fazer esse trabalho para que negros e negras se reconheçam negros. Esse processo de descolonização vai viabilizar e possibilitar que eles se emancipem.
A reação dos moradores de favela com relação ao movimento vai muito da forma como o movimento atua. Geralmente nós conseguimos ser exitosos quando atuamos nas necessidades existentes dentro dos territórios. É assim que nos procuramos atuar, e o nosso principal objetivo com os comitês é aproximar-se dos coletivos que já atuam dentro destes territórios, seja na área da educação ou cultura, para que possamos trabalhar junto com eles, e ao mesmo tempo realizar o trabalho mais importante que é elevar a consciência de classe dentro destes territórios. A adesão vai muito de acordo com a forma de atuação do movimentos. Eu acho que a esquerda tem que preocupar-se com isso, para que nosso discurso não seja abstrato dentro destes territórios. A primeira relação que nós devemos ter como os moradores dos territórios de favela que lá vivem é atuar nas necessidades mais básicas existentes ali dentro. Através desta atuação, a gente tem a responsabilidade de elevar a consciência de classe dos trabalhadores. É agindo neste processo de descolonização mental do povo negro que a gente vai possibilitar o inicio da emancipação.
Eu acho que esse tem que ser a responsabilidade das esquerdas.
Existe também a questão das milícias e do tráfico, principalmente com as milícias porque elas têm intencionalidade de poder de Estado. Os varejistas da droga, se você não incomodá-los na venda dos entorpecentes, você não vai ter nenhum desconforto. As milícias não são agentes do estado. Eu costumo a dizer que as milícias são o Estado.
No final de sua entrevista, Constatine me pede para finalizar com a seguinte frase- “Todas as revoluções são impossíveis, até tornarem-se inevitáveis” (Trotsky)
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