Publicado originalmente no Vermelho
Estamos todos de acordo de que Bolsonaro realiza um governo autoritário, com traços nitidamente neofascistas. Sabemos também que a sua postura irresponsável perante a pandemia pode ser claramente qualificada como genocídio. Tampouco restam dúvidas quanto às intenções neoliberais de Paulo Guedes no comando da economia, onde o objetivo central sempre foi o de promover a destruição do Estado e o desmonte das políticas públicas. Nesse conjunto, a obsessão com a dilapidação do patrimônio estatal se concretiza por meio da venda das empresas estatais e outras formas mais sutis de privatização.
Isto posto, é forçoso reconhecer que não cabe atribuir a esse governo todo o peso e responsabilidade a respeito da decisão recente da Ford de encerrar suas linhas de produção em território brasileiro. Na verdade, a saída da multinacional do automobilismo vem apenas confirmar uma tendência histórica de perda crescente da presença da indústria em nossa capacidade produtiva e econômica. Trata-se do processo que o economês chama de “desindustrialização”, que pode ser perfeitamente identificado pela figura abaixo.
Ao longo das últimas sete décadas, a indústria brasileira conheceu duas fases bastante distintas. Numa primeira etapa, observou-se um crescimento expressivo, que tem início no pós guerra, em especial com a política de industrialização iniciada por Getúlio Vargas e levada à frente por Juscelino Kubitschek. A participação da indústria da transformação no Produto Interno sai de 16% e atinge um patamar próximo a 27% ao longo da década de 1970. Esse é o período chamado de “milagre econômico” durante a ditadura militar que se instalou em 1964. Data dessa época a constituição da indústria de bens de capital e de base (siderurgia, petroquímica, energia elétrica, entre outras), da indústria automobilística e de material elétrico e eletrônico.
Collor e o início do fim
A segunda etapa vem na sequência do Plano Cruzado, em especial partir de 1990, quando Collor era o Presidente da República. Aquele ano foi um marco no processo de perda de importância da indústria em nosso PIB, com a introdução da abertura comercial indiscriminada e a disseminação generalizada da ideia de que tudo o que fosse importado seria de melhor qualidade. Ficaram muito marcadas as imagens, muito divulgadas à época, de uma suposta modernidade do produto estrangeiro, onde o Presidente inclusive associava os automóveis fabricados no Brasil por multinacionais a “carroças”, em contraposição às supostas virtudes dos veículos fabricados no exterior.
A partir de então, a presença da indústria despenca daqueles 27% para o patamar atual em torno de 11%. Vale notar um sobre fôlego no início dos anos 2000, em especial, durante o primeiro mandato do Presidente Lula. Mas a partir de 2005, tudo volta à tendência anterior da desindustrialização acelerada. Na disputa da narrativa, esse processo era muitas vezes saudado como saudável, uma vez que a indústria seria vista como algo do passado. Os exemplos de países escandinavos, por exemplo, eram apontados como uma substituição positiva de plantas industriais por setores de serviços e da chamada “economia do conhecimento”. Ocorre que no Brasil, ao contrário, a perda de protagonismo da indústria deu-se com a maior importância exercida por setores de baixo valor agregado no processo. Trata-se do agronegócio em fase de expansão e os serviços de baixa qualidade, como telemarketing e as operadoras de entregas.
Essas quatro décadas de desindustrialização corresponderam também ao período de auge do ideário neoliberal, onde um dos alicerces residia justamente na crença que a liberalização comercial completa só traria benefícios para os países que a adotassem. A tempestade perfeita que se abateu sobre o Brasil veio com um longo período também de sobrevalorização cambial, em razão da política monetária de juros elevados praticada pelo Banco Central. Ao apresentar nosso país para o universo da especulação financeira internacional como o campeão da taxa de juros, os governos permitiram que a taxa de câmbio valorizada artificialmente estimulasse ainda mais o consumo de importados.
Informática e Gurgel: governo joga contra
Todas as tentativas de se criar uma política industrial que favorecesse o surgimento e fortalecimento de atores industriais nacionais foram desmontadas. Esse foi o caso da política nacional de informática, por exemplo. Independentemente das críticas que possam ser feitas ao projeto, o fato é que o Brasil abriu mão unilateralmente de desenvolver tecnologia própria ou em condições de competir com os grupos multinacionais. As receitas do neoliberalismo apontavam que qualquer tentativa de proteção a setores nascentes ou estratégicos seria prejudicial ao país, em razão de custos fiscais associados aos subsídios necessários, aos preços mais altos e à qualidade inferior.
Outro exemplo emblemático foi um projeto na própria indústria automobilística, onde atuava a Ford. Ao longo da década de 1970/80, surge uma empresa nacional no setor, a Gurgel. Seus projetos eram ambiciosos e de custo relativamente reduzido, com inovações estratégicas já à época, como os motores à álcool e mesmo veículos elétricos. Porém, para competir e sobreviver em um ambiente dominado pelo oligopólio das multinacionais, era fundamental que a empresa contasse com apoio do setor público. Ao contrário de casos similares – como a Índia, por exemplo – o Brasil resolveu deixar Gurgel à deriva e a empresa não aguentou o clima pós abertura comercial. A falência em 1994 operou como uma pá de cal em qualquer ensaio de desenvolvimento tecnológico autônomo, que propiciasse algum grau mínimo de soberania nacional no setor.
O encerramento das atividades da Ford no Brasil implica na perda de 5 mil empregos diretos nas unidades espalhadas pelo Brasil inteiro. No quadro de aprofundamento do desemprego e da falência generalizada de empresas, certamente não pode ser entendida como uma boa notícia. Para além de tais postos de trabalho e da produção de veículos nas linhas de montagem cada vez mais automatizadas, a notícia é muito ruim também para o setor de auto peças, que depende basicamente das entregas para as própria montadoras, sob a base de encomendas. O chamado efeito em cascata de tal interrupção de atividades deverá provocar, além disso, um impacto negativo direto nas economias locais e regionais.
Necessário debate sobre rumos do desenvolvimento
Apesar de tudo, o governo Bolsonaro nada fez para reverter tal quadro. As declarações do Presidente e de seu Ministro da Economia são quase de exaltação ao fim das atividades da multinacional por aqui. Permanece sempre a lógica obsessiva de Paulo Guedes em cortar despesas; no caso, os chamados “gastos tributários” sob a forma de isenções tributárias. Uma loucura, caso se leve em consideração a continuidade da produção do grupo aqui na nossa vizinha Argentina. Ou mesmo a opção do grupo em 2009 de ampliar os investimentos ainda no Brasil, quando Lula ocupava o Palácio do Planalto.
Seria importante que a decisão da Ford recolocasse o necessário debate acerca dos rumos do desenvolvimento brasileiro e da recuperação da importância do planejamento como instrumento público para a construção de um projeto estratégico de futuro. A indústria ainda permanece como a opção de geração de maior valor agregado para nossa economia, mas isso exige um investimento público pesado em áreas essenciais, como educação e ciência e tecnologia. A China e demais países asiáticos são o exemplo vivo de que a inserção internacional exige recuperação de protagonismo nacional e não mais apenas uma aceitação passiva de subalternidade no cenário global.
Não existe a alternativa falaciosa de saltar etapas, como nos fazem crer os mercadores ilusionistas do neoliberalismo. Só conseguiremos atingir, de forma mais soberana como nação, a tão sonhada autonomia da economia do conhecimento se tivermos um sólido domínio e presença em áreas estratégicas da produção industrial. Ou então permaneceremos deitados no berço esplêndido da destruição de nossas reservas naturais para exportação de minerais e produtos agropecuários. Esse é o caminho para fincarmos nossas raízes, de forma cada vez mais definitiva, no atraso do pacto neocolonial da divisão internacional do trabalho.