POR DANIEL CÉSAR
A reunião entre sertanejos e o presidente Jair Bolsonaro na última quarta-feira, 29, quando ele mandou a imprensa para a “puta que pariu”, não foi por acaso e muito menos serviu para mostrar o conservadorismo da classe.
Convicções à parte, o ritmo musical que toma conta do Brasil há vários anos é muito mais que “por Deus e pela família” e tem como preocupação principal o próprio bolso.
Naiara Azevedo, Sorocaba e o principal apoiador do presidente, Eduardo Costa, têm algo em comum: usam a Lei Rouanet do sertanejo, as Festas de Peão.
Quem mora em grandes cidades ou capitais talvez não saiba, mas as Festas de Peão são parte integrante no calendário de eventos da maior parte dos municípios do interior do país, principalmente no Sudeste e no Centro-Oeste.
E, quase sempre, os cantores cobram uma pequena fortuna que, em 90% dos casos, saem dos cofres públicos.
Enquanto vociferava pelo fim da Lei Rouanet, que ele chamou mais de uma vez de mamata, Eduardo Costa fez várias citações de apoio a Bolsonaro, dando a entender que não aprovava o uso do dinheiro público pela classe artística, assim como já declarou o presidente.
O que ele não contou a ninguém é ser um dos líderes de um esquema milionário e que, há anos, funciona como mola propulsora para a fama e fortuna.
Em 2019, antes da pandemia do coronavírus, o amigo de Leonardo fechou contrato com a prefeitura de Cristalina (GO) para fazer um show na 30ª exposição agropecuária e recebeu, por isso, R$ 150 mil. Até vídeo no perfil do prefeito, Daniel do sindicato, o sertanejo gravou.
Mas este é apenas um dos diversos shows que o bolsonarista raiz fez pelo Brasil naquele ano em Festas do Peão com dinheiro público. Levantamento do DCM mostra que Eduardo participou de eventos em cidades como Bady Bassit, Sertãozinho, Pacaembu e Santa Cruz do Rio Pardo, todas em São Paulo e com uso de dinheiro público entre R$ 100 e R$ 150 mil.
E enquanto fazia vídeos zombando da ex-presidenta Dilma, Naiara Azevedo saia do ostracismo para a fama em meados da década passada, se tornando milionária. A cantora rodou pelo interior do país em festas do peão até se tornar um dos principais nomes do sertanejo no Brasil.
Em 2019, a intérprete de “50 reais” cobrou muito mais que isso para subir ao palco em Extrema (MG), segundo comprovante conseguido pelo DCM e que aponta R$ 100 mil de pagamento saindo dos cofres da prefeitura.
A pequena cidade de menos de 37 mil habitantes também foi vítima do assalto praticado por outra apresentação de sertanejo conservador e bolsonarista.
Sorocaba, que discursou em favor de Bolsonaro na reunião, não se fez de rogado, ao lado de seu parceiro musical Fernando, em receber R$ 117 mil para fazer uma única apresentação na cidade, no mesmo evento em que a colega também cantou.
A dinâmica é sempre a mesma e vale para todo e qualquer cantor sertanejo, só mudam o nome e os valores, nunca abaixo de R$ 80 mil e, em alguns casos, ultrapassando os R$ 200 mil, como com Luan Santana e Gusttavo Lima.
Por que Lei Rouanet de Sertanejos
Embora os eventos sejam abertos para todo o tipo de público e, portanto, deveriam dar espaço para os mais variados ritmos, o sertanejo universitário tomou conta das Festas de Peão há muito tempo. Estudo publicado em 2017 pela UNIS, de Minas Gerais, mostra que a arrecadação dos cantores desse estilo ultrapassa a de qualquer outra área.
Mas isso acontece porque os empresários do ramo no interior são todos ligados ao agronegócio e possuem intenso vínculo com prefeitos dessas cidades, inclusive com ajuda financeira nas campanhas eleitorais. E em troca de robustos apoios, eles exigem a contratação de shows sertanejos nas Festas de Peão, fechando a porta para qualquer outro ritmo musical sob a justificativa de que não combina com o evento.
Por ser uma contratação muito específica – afinal, não existem duas Naiaras Azevedos – quase sempre a contratação ocorre por inexigibilidade de licitação, ou seja, cobra-se o valor que bem entender, inclusive com direito a diferenças monumentais entre uma cidade e outra, a bel prazer do prefeito e do empresário em questão.
A aparição de Naiara Azevedo, Sorocaba, Eduardo Costa e outros em reunião com Bolsonaro é uma forma de induzir o público a manter a confiança num governo, mesmo que ele esteja desmanchando nas mãos. E a reunião dá mostras disso pelo discurso dos próprios envolvidos.
“A gente gostaria que as prefeituras se movimentassem, quando voltar a fazer shows, para contratar artistas regionais, municipais e nacionais, em aniversários de cidades. A prefeitura de tal cidade tem uma verba, que tenha um teto, para gastar com um artista nacional, alguns artistas regionais e muitos artistas do município”, disse o cantor Sorocaba no famigerado encontro com o presidente, sem vergonha de reconhecer o método.
Assim, ele mandou um recado também para os prefeitos de que o presidente pode apoiar determinada cidade com liberação de recursos, mas para isso é preciso usar a máquina pública em favor dos sertanejos universitários, que não demonstraram constrangimento nesse tipo de mamata.
Sertanejos e o agronegócio
E se a crise chegou no bolso dos brasileiros, o mesmo não acontece com os sertanejos, ainda que não realizem shows há quase um ano. É que a Lei Rouanet do grupo serve para abocanhar dinheiro público a fim de que eles se tornem investidores onde realmente interessa: o agronegócio e, este vai bem, obrigado.
Se Bolsonaro ainda não caiu é porque o dólar em alta vem contribuindo para a exportação em preço de ouro de produto do agronegócio e, enquanto os brasileiros ficam cada vez mais pobres, os fazendeiros – muitos deles cantores – enriquecem sem pudor algum.
Luan Santana, Leonardo, Eduardo Costa e Gusttavo Lima têm várias coisas em comum, além de cantar e colocar dinheiro público no bolso, eles também são donos de fazendas que exportam itens como tomates e laranjas – ainda que a fruta possa soar como um trocadilho.