Publicado no Brasil de Fato
Por Leandro Melito
Comandante do Exército Brasileiro entre 2015 e 2019, o general Villas Bôas revelou, em entrevista publicada pela editora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), alguns episódios que levaram as Forças Armadas brasileiras a atuarem na vida política do país, processo que resultou na eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) e na presença massiva de oficiais em todos os escalões do atual governo.
Com duração de 13 horas, a entrevista foi concedida pelo militar ao diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Celso Castro, e publicada no livro General Villas Bôas: conversa com o comandante.
Postagem em tom de ameaça
Um dos momentos emblemáticos dessa atuação, protagonizado por Villas Boas foi a postagem que ele realizou em 2018, ainda na condição de comandante do Exército brasileiro, em tom de ameaça ao Supremo Tribunal Federal (STF), na véspera do julgamento do habeas corpus apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Na postagem ele afirmou que o Exército “compartilha o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais” e obteve o apoio do então candidato Jair Bolsonaro.
Ingerência no poder judiciário
No livro, Villas Boas revela que a postagem não foi apenas de sua autoria. Elaborada por sua equipe de oficiais, o texto obteve o aval de outros integrantes do Alto Comando do Exército residentes em Brasília antes de sua publicação. “Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20 horas”, contou Villas Bôas na entrevista.
“Significa que isso foi uma decisão do Exército, e não algo que partiu da cabeça do comandante”, aponta o antropólogo Piero Leirner, também estudioso sobre os militares e autor do livro O Brasil no espectro de uma guerra híbrida
Para Leirner, a declaração de Villas Bôas “deixa claro um papel institucional de ingerência no Poder Judiciário”.
“Note que o general Ajax já estava lá no STF ‘assessorando’ a presidência [ministro Dias Toffoli], portanto o tuíte foi para deixar o STF de mãos atadas frente à opinião pública. Ou seja, fez-se política”.
Questão indígena
Para Leirner, uma das surpresas da narrativa de Villas Bôas impressa no livro é o peso que a “questão indígena” teve na articulação entre os militares para sua atuação na vida política do país.
“A questão da Raposa Serra do Sol e TI Yanomami teve no mínimo tanto impacto como a CNV [Comissão Nacional da Verdade]. Meu faro de que a coisa começou com a rebelião do Heleno em 2008 estava certo, acho. Foi a partir daí que eles elaboraram um plano de longo prazo”, afirmou Leirner em uma publicação em seu perfil no Facebook.
Procurado pelo Brasil de Fato, o antropólogo ressalta que a “questão indígena” está no centro do ordenamento ideológico e doutrinário militar desde os anos 1990.
“Eles transferiram muito do foco do ‘inimigo interno’ da ditadura para o problema da ‘cobiça internacional da Amazônia’, deslocando toda uma leitura da realidade e o consequente emprego das Forças Armadas para a Amazônia”, aponta.
A primeira liderança política a surgir entre os militares foi o general Augusto Heleno, após a demarcação da terra indígenas Raposa Serra do Sol em 2008, durante o segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Heleno começou a fazer críticas públicas, no Clube Militar, de forma que isso vazou para a imprensa e lançou um princípio que, lá dentro, foi tomado como um ‘papel de liderança’ lançado por ele, que começou a vocalizar contra Lula, esquerdas, PT”, explica Leirner.
Comissão Nacional da Verdade
O segundo momento de mobilização política entre os militares, segundo o antropólogo, foi a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), quando Dilma Rousseff ocupava a Casa Civil e já havia lançado sua candidatura para as eleições presidenciais de 2010.
“Houve um processo de ‘imitação’ por parte de outros militares. Um dos casos foi o do general Maynard Santa Rosa, e a eles se seguiram movimentos em série. Mourão foi isso”, aponta Leirner.
Colegiado instituído pelo governo para investigar as graves violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, a CNV se debruçou principalmente sobre as violações ocorridas durante o período da ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964, que durou 21 anos.
Com a fundação da CNV em novembro de 2011, no primeiro ano do governo Dilma, os militares se uniram em bloco contra essa política que classificaram como “revanchismo” da esquerda brasileira.
Os trabalhos da comissão foram encerrados em dezembro de 2014, após a publicação de um relatório que aponta as responsabilidades de agentes do Estado, em especial das Forças Armadas brasileiras em episódios de sequestros forçados, tortura e morte de opositores ao regime.
“O pessoal lá do topo sabia do potencial político disso e, ainda em 2014, logo depois da reeleição, franquearam a entrada de Bolsonaro para dentro de instalações militares para fazer campanha. Toda essa coisa foi trabalhada por Villas Bôas, que ‘para fora’ tinha um discurso legalista, mas ‘para dentro’ deixou a política tomar altas doses de vitamina, seguindo o exemplo e a liderança de um Heleno da vida”, aponta Leirner.