Publicada neste mês, uma portaria do governo federal indicou representantes para “analisar aspectos atinentes à formulação, desenho, governança, monitoramento e avaliação da Política Nacional de Direitos Humanos, com vistas a oferecer recomendações para seu aprimoramento e de seus programas”.
A ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, responsável pelo projeto, definiu que o GT se reunirá semanalmente até novembro.
A proposta do grupo, composto por um militar aliado de alunos de Olavo de Carvalho; um advogado católico crítico das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre células-tronco, homofobia e aborto em casos de anencefalia e, entre outros, uma ex-assessora parlamentar contrária ao aborto mesmo em casos de estupro é rever Política Nacional de Direitos Humanos do país.
Nesta terça, 23, Juliana Dal Piva conta em sua coluna no UOL sobre as relações de Angela Gandra, secretária de Damares, com ultraconservadores na Polônia.
Angela é irmã de Ives Gandra Martins Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho do Brasil —ele e o pai, Ives Gandra Martins, são vinculados à Opus Dei.
Confira a reportagem na íntegra.
Desde outubro do ano passado, milhares de mulheres tomaram as ruas na Polônia para protestos contra a decisão do Tribunal Constitucional daquele país que ampliou as restrições ao aborto legal. E, no auge desses protestos, em novembro, quem marcou presença para celebrar a mudança foi uma representante do governo brasileiro.
Angela Gandra, secretária da Família do Ministério de Direitos Humanos do Brasil, cruzou o oceano Atlântico, em plena pandemia de covid-19, para apoiar pessoalmente em Varsóvia, capital polonesa, a decisão que restringiu ainda mais o aborto naquele país. A prática só é legal agora em casos de estupro, incesto e quando a vida ou a saúde da mãe estiverem em perigo. Os casos de malformação do feto foram proibidos.
Com despesas pagas pelo Instituto Ordo Iuris, uma das organizações ultraconservadoras privadas mais influentes naquele país, Gandra participou de eventos e se reuniu com membros do governo local e políticos da Solidarna Polska (Polônia Unida).
Gandra foi inicialmente convidada para palestrar na “Conferência de Defesa dos Direitos da Mulher”, organizada pela Ordo Iuris, em Varsóvia, no dia 12 de novembro do ano passado. A conferência foi organizada pelo instituto ultraconservador em resposta aos protestos em massa contra a decisão do Tribunal Constitucional sobre o aborto.
Com forte presença católica, o Brasil é um lugar importante no mapa dos movimentos religiosos. Foi no Brasil que surgiu a Sociedade Tradição Família e Propriedade, a TFP, que depois criou organizações na Europa, em especial na Polônia. Lá, eles criaram a Fundação Skarga, em Cracóvia, e mais tarde, fundaram a Ordo Iuris.
Angela Gandra é advogada, seu irmão, Ives Gandra Martins Filho, é ministro do Tribunal Superior do Trabalho do Brasil —ele e o pai, Ives Gandra Martins, são vinculados à Opus Dei. Ela integra o governo do presidente Jair Bolsonaro desde janeiro de 2019 e junto com a ministra Damares Alves é responsável por cuidar da pasta que atua em prol dos direitos humanos e que, no atual governo, passou a se denominar Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
A Reporters Foundation e o UOL obtiveram acesso a documentos que mostram os detalhes da visita de Gandra à Polônia. Em 28 de outubro de 2020, seis dias após a decisão do Tribunal Constitucional, Ewa Rowinska, coordenadora da Ordo Iuris, enviou um email para Gandra falando sobre a situação no país e fazendo o convite para o evento.
“A escalada de protestos e distúrbios de rua não tem precedentes. Há [também] muita desinformação e manipulação em relação ao julgamento do nosso tribunal (…). É por isso que estamos pensando em organizar um painel internacional sobre os direitos das mulheres “, acrescenta.
Rowinska explica o objetivo da sua ação: “Nosso principal objetivo é mostrar que a ideia dos direitos das mulheres agora é muito manipulada e muitas vezes leva à estigmatização das mulheres que não os compartilham”.
Como o tema é quente na opinião pública local, Rowinska insiste: “A conferência será realizada online em 12 de novembro, mas se for possível, ficaríamos honrados se você viesse para a Polônia. Claro, cobriremos todos os custos relacionados com o voo, hotel, etc”.
Apesar da pandemia, Gandra decide voar para a Polônia, embora os outros participantes optem por falar à distância por videoconferência, prática muito comum para evitar a proliferação da contaminação do novo coronavírus.
Além da secretária de Estado para Assuntos da Família, a conferência organizada pela Ordo Iuris contou com a presença de Sharon Slater e Alix Leijard. Em outubro de 2020, ambos assinaram um parecer Amicus Curiae, que Ordo Iuris encaminhou ao Tribunal Constitucional. Suas organizações —Family Watch International e a francesa Femina Europa— foram os parceiros oficiais da conferência.
Family Watch International é uma organização controversa que o US Southern Poverty Law Center (que monitora as atividades de movimentos e organizações extremistas nos EUA) classificou como promotora de discurso de ódio. A Family Watch International está tomando medidas para combater o “imperialismo cultural ocidental” e sua principal área de operação inclui a África e as Nações Unidas. Slater apelou para se opor aos esforços da ONU para descriminalizar a homossexualidade. Em alguns países africanos, pessoas suspeitas de serem homossexuais podem enfrentar uma prisão ou até mesmo a pena de morte.
Ministério de Assuntos Ordo Iuris
No escritório da Ordo Iuris, em Varsóvia, Angela Gandra não apenas debateu o aborto mas também manteve reuniões diplomáticas com representantes do governo polonês.
Ela, inclusive, divulgou essas participações. Gandra postou imagens em sua conta no Instagram mostrando que ela manteve dentro do instituto uma reunião online com Pawe? Jab?onski, vice-ministro das Relações Exteriores da Polônia —ele trabalhou como analista na Ordo Iuris, em 2016. O encontro também teve a presença de funcionários do Ministério da Família daquele país.
Questionada sobre o encontro, Gandra disse apenas que “o tema (da reunião) foi políticas públicas familiares”. Não especificou quais ou mencionou qualquer conflito sobre o fato das discussões de políticas públicas entre agentes de estado se darem dentro de uma instituição privada.
O Ministério das Relações Exteriores polonês informou que “o vice-ministro das Relações Exteriores, Pawe? Jab?onski participou da reunião (…) organizada como VTC [videoconferência] enquanto ele estava em quarentena e trabalhando remotamente. A reunião teve como foco a cooperação internacional entre a Polônia e o Brasil e o intercâmbio de práticas na área de política social e pró-família”.
Já a assessoria do Ministério da Família da Polônia, por outro lado, escreveu que “um representante do nosso departamento juntou-se à reunião a convite de outro ministério. A natureza da participação do ministério foi limitada apenas a ser um convidado na referida reunião.
Mas e o governo polonês sabia que Gandra estava visitando o país à convite da Ordo Iuris e com despesas pagas pelo instituto? E que fórmula de cooperação intergovernamental internacional pressupõe que as reuniões de nível ministerial sejam financiadas por instituições privadas?
O Ministério das Relações Exteriores polonês informou, por nota, que “não pede a representantes de outros países que apresentem comprovante de compra de passagens aéreas, quartos de hotel e outras despesas —isso seria uma violação grosseira das regras que vinculam a Polônia nas relações diplomáticas”.
Angela Gandra declarou ao governo brasileiro que a viagem não teve nenhum custo para a União porque foi a convite da Ordo Iuris. Sobre sua estadia em Varsóvia, Gandra disse somente que “ela sempre viaja na classe econômica” e que “na Polônia, ela passou duas noites na casa de seus amigos”.
Maciej Grajewski, diretor de Comunicação da Ordo Iuris, completou: “A ministra viajou na classe econômica em um voo regular. Os custos foram cobertos com recursos repassados por doadores que apoiaram atividades de benefício público que visam, entre outras coisas, a proteção dos direitos humanos”. O total gasto da viagem? Não foi informado.
O ex-embaixador da Polônia nos Estados Unidos Ryszard Schnepf opinou que a situação feriu as normas daquele país. “É contra todas as regras, sem dúvida. A situação em que uma organização privada polonesa financia a visita de um funcionário do governo de outro país para se encontrar com representantes do governo não deve ocorrer. A linha entre o que é privado e o que é público ficou tênue “, afirma.
Uma aliança contra gênero e educação sexual
Durante a sua estada na Polônia, Gandra também esteve pessoalmente com um grupo de políticos que representam a Polônia Unida, partido da coligação governista. Em 13 de novembro de 2020, foi realizada uma reunião no Ministério da Justiça daquele país entre os políticos da Polônia Unida ((Michal Wójcik, Janusz Kowalski e Michal Wos)) e Angela Gandra.
Perguntamos a Ordo Iuris se eles haviam consultado representantes do Ministério da Justiça sobre a visita de Angela Gandra à Polônia. Maciej Grajewski, diretor da Ordo Iuris, informou somente que soube que ela manteve reuniões com representantes do governo polonês. Já o Ministério da Justiça daquele país diz que “organizou uma reunião solicitada pelo ministério brasileiro”.
Por que Janusz Kowalski, na época vice-ministro do Patrimônio do Estado, e Michal Wójcik, membro do Conselho de Ministros, também participaram da reunião? O governo polonês respondeu que “o ministro Wójcik participou como membro do Conselho de Ministros, que trata da proteção dos direitos civis”.
“Kowalski participou da reunião porque é responsável por assuntos relacionados à cooperação internacional. O contato com um representante do governo brasileiro é uma oportunidade de construir um relacionamento que pode abrir o campo para a cooperação econômica”, respondeu o governo. No entanto, há poucos dias Kowalski foi demitido devido ao conflito político dentro da coalizão governante local.
O que mais os políticos da Polônia Unida e Angela Gandra discutiram? O Ministério da Justiça afirma que o encontro se concentrou na “cooperação entre a Polônia e o Brasil no fórum internacional, por exemplo, dentro da ONU ou da OCDE em questões relativas à proteção dos direitos humanos, em particular, a proteção dos direitos das crianças e da família”.
A Polônia e o Brasil se aliaram com Hungria e Estados Unidos, em políticas contra discussões sobre gênero, aborto e educação sexual em fóruns na ONU. Em novembro de 2019, na cúpula da ONU em Nairóbi (Quênia), o grupo defendeu um esforço bem-sucedido para remover a declaração “saúde e direitos sexuais e reprodutivos” da posição da ONU, porque “ela poderia ser usada para promover ativamente práticas como o aborto”. Desde dezembro de 2018, esses quatro países também participam de um programa chamado “Parceria para as Famílias”, uma aliança cujo “objetivo é promover a família e a política pró-família no cenário internacional”.
A Aliança “Parceria para Famílias” é o grande slogan de Angela Gandra. Questionada pelo UOL e pela Reporters Fundation, a secretária explica que “não se trata de um programa, mas de uma iniciativa conjunta de países com o objetivo de sensibilizar para o desenvolvimento de políticas públicas de apoio à família e baseadas em evidências científicas e práticas confiáveis
Mas, durante sua estadia na Polônia, a secretária participou virtualmente de um evento no Brasil, onde falou o que, de fato, significa o “Partnership for families”. No Seminário Virtual, promovido pela Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto em Defesa da Vida no Brasil, Angela declarou que: “A secretaria da família propôs a ‘Partnership for families’ e o Ministério das Relações Exteriores (do Brasil) assumiu esse trabalho também junto à missão de Nova York e a partir da família nós queremos defender a vida e a mulher. Lançamos juntos no dia 22 de outubro o consenso de Genebra para que nós possamos dizer que não existe um direito ao aborto internacional. Nesse sentido, quanto mais a gente fortalece a pauta de fora, mais a gente fortalece dentro”, contou Angela Gandra.
Em 22 de outubro de 2020, no mesmo dia em que mulheres polonesas se reuniram em protesto em frente ao Tribunal Constitucional do país, signatárias do “Partnership for familiares”, supostamente agindo em prol da saúde da mulher e do fortalecimento da família, lideraram a assinatura de um documento que apelou aos países da ONU para se oporem ao reconhecimento do acesso ao aborto como um direito humano (Declaração de Consenso de Genebra). Após a eleição, Joe Biden retirou o apoio dos EUA à declaração. Os atuais signatários incluem os governos de estados árabes e africanos, o Brasil e dois representantes isolados da UE —Polônia e Hungria.
*Essa reportagem foi produzida por Konrad Szczygie (Reporters Fundation) e Juliana Dal Piva (UOL), Colaborou Julia Dauksza (Reporters Fundation)