Por José Dirceu
Por trás do nevoeiro que cobriu a semana que passou, encontrava-se latente o furacão alimentado pela pandemia que devasta nosso povo e país; pela vacinação fracassada por incúria, incompetência e negacionismo do governo; pela inacreditável decisão de não prorrogar o auxílio emergencial deixando milhões de cidadãos à mercê do desemprego e da fome; e, por fim, pelo decreto que libera geral as armas e munições para as milícias políticas do bolsonarismo.
A prisão do golpista assumido Daniel Silveira (PSL-RJ), símbolo e expressão do bolsonarismo, não foi suficiente para reduzir o impacto das revelações também golpistas, que beiram à traição nacional, do ex-general Villas Bôas, e da entrevista histórica do hacker Walter Delgatti à TV 247 revelando as vísceras apodrecidas da Lava Jato. Mas 2 fatos, tratados pela mídia sem a relevância política e estratégia que merecem precisam ser destacados: a chamada independência do BC e a deposição do presidente da Petrobras.
Há uma ligação intrínseca entre a independência do BC e a Petrobras, que é a entrega de ambas instituições vitais para o desenvolvimento do país ao capital financeiro, aos que detêm patrimônio financeiro, aos fundos e bancos de investimentos, ao rentismo e, o mais grave, ao capital externo. O que praticamente nos coloca à mercê da dependência externa com todas suas consequências: desnacionalização, desindustrialização e total exposição ao mercado financeiro internacional, como comprova a opção pela política de preços paritários de importação e pelo desmonte da Petrobras como empresa-mãe de energia, muito mais do que só uma exploradora de óleo e gás.
Independência para quem?
A propalada independência do BC, na verdade, é sua entrega ao capital financeiro internacional. A decisão de liberar depósitos em dólares no país é apenas consequência natural. Na prática, a independência do BC retira do Poder Executivo a política fiscal, de investimentos, o controle da política cambial (as atribuições do CMN foram transferidas para o BC), das reservas e dos movimentos de capitais, da política tributária e mesmo do crédito público e geral. Concretamente, o governo perde sua capacidade e soberania sobre a política econômica. A tudo isso se soma a decisão de constitucionalizar o teto de gastos e a regra de ouro que, também, retirou do Congresso sua soberania sobre o Orçamento nacional.
A captura do BC pelo sistema bancário e financeiro, antes exercida à sombra, agora torna-se legal. Por lei, retirou-se do presidente eleito pelo voto soberano a indicação nos primeiros 2 anos do presidente do BC, já hoje referendado ou não pelo Senado, e, na prática, de metade da diretoria.
É usurpação inconstitucional do poder originado da soberania popular via eleição da Presidência e do Congresso e o fim da autonomia do Executivo e do Legislativo. O que torna nossa economia e moeda, não conversível, totalmente vulneráveis às crises periódicas e aos ciclos econômicos internacionais. Ao se autorizar o uso do dólar e outras moedas estrangeiras no país, como somos totalmente dependente das exportações de alimentos, minerais e petróleo, ficamos prisioneiros das finanças internacionais –e já sabemos o destino das nações que perdem sua soberania!
O petróleo, o ouro negro, é uma commodity vital e estratégica, tanto que na maioria dos países é tema da segurança nacional, começando pelos Estados Unidos. O controle de sua produção e das fontes mundiais é vital para todo e qualquer país soberano. No nosso caso, a Petrobras não só nos garantiu autossuficiência na produção como no refino e distribuição. A empresa transformou-se em motor da expansão industrial, inovação e do crescimento econômico. Já era uma das maiores petrolíferas do mundo na década de 1980, com a descoberta da Bacia de Campos. E sua importância mundial consolidou-se em 2004, com o pré-sal.
A Petrobras não era apenas uma produtora de petróleo e gás, o que já seria suficiente; era uma empresa nacional, vertical e integrada de petróleo e energia; de inovação, tecnológica e ciência; indutora da indústria de equipamentos e construção naval, da engenharia nacional e da construção pesada. Seu poder de monopólio legal ou não, sua rede de refino e distribuição nacional, garantiam que os preços dos derivados –gasolina, óleo diesel e GLP, gás de cozinha– fossem administrados, até 2012. De tal forma que, sem prejuízo de sua rentabilidade e mesmo dos acionistas, era possível não repassar aos consumidores todo o ônus da variação de preços do mercado internacional e da sede de lucros a curto prazo dos fundos de investimentos e acionistas.
Desmonte da Petrobras
O desmonte da empresa e a entrega de seu controle às multinacionais e aos financistas começa com a Lava Jato e a mentira do endividamento inadministrável –bastaria levar em conta o valor das reservas do pré-sal e mesmo a possibilidade do alongamento da dívida. O fato é que a empresa tinha e tem um custo bem inferior na extração e no refino, se comparado aos de outras petroleiras, e nunca deixou de dar lucro ao não acompanhar ou adotar preços de paridade de importação. De 2007 a 2014, os investimentos foram superiores a R$ 45 bilhões ao ano; agora para o período 2021-25, estão previstos R$ 11 bilhões ao ano.
A política que norteou a direção da Petrobras, até o seu desmonte, sempre foi a de produção, refino distribuição articulados; uma cadeia de suprimentos de equipamentos nacional, com conteúdo local e compras governamentais; investimento não só na produção e refino, mas em inovação e tecnologia. Fomos pioneiros na descoberta em águas profundas, nossa indústria de equipamentos e construção naval se consolidava, nossa engenharia e projetos avançava e a renda do petróleo seria apropriada pela nação via o Fundo Social para investimento em educação, ciência e tecnologia, saúde e meio ambiente.
Hoje essa renda, um passaporte para o futuro, está sendo transferida para a minoria de rentistas e para as multinacionais e alguns grupos nacionais. Ou seja, concentrando mais renda e riqueza e inviabilizando investimentos na infraestrutura social e econômica do país. Quem ganhou e ganha com o desmonte da Petrobras foram e são as multinacionais norte-americanas, as empresas de logística e as distribuidoras privadas.
A entrega do conselho de administração da empresa para os fundos de investimento; a privatização e desmonte das refinarias, dos terminais, dos tanques e dutos, da distribuição (BR, TAG e Liquigás); a dependência cada vez maior das importadoras multinacionais de derivados, reduzindo a capacidade de refino nacional e aumentando a exportação de óleo cru, colocam-nos à mercê dos preços internacionais com o consumidor nacional –famílias e empresas– pagando o preço por uma política inconsequente de busca de lucro de curto prazo sem levar em conta o interesse nacional.
De toda forma, a decisão recente do presidente Bolsonaro de demitir o presidente da Petrobras e não dar continuidade aos aumentos de preços via um fundo de estabilização e o anúncio de uma intervenção também nos preços da energia elétrica podem significar um rompimento da aliança entre o bolsonarismo e o capital financeiro. A queda de braços já começou com a queda vertiginosa as ações da empresa na Bolsa de Valores e a quase unânime gritaria dos porta-vozes tucanos na rede Globo contra a “traição” ao ideário liberal praticado pelo governo. Até onde essa cisão irá, veremos nos próximos dias.
É hora de deter o desmonte da Petrobras, parar com as privatizações e venda de refinarias, voltar a política de preços que a empresa praticou até 2012, retomar o refino nacional e a filosofia de empresa integrada do poço ao poste, alongar sua dívida e investir não apenas na produção, mas em inovação e no estímulo à indústria nacional. É possível fazer tudo isso, como já foi feito, com a garantia de rentabilidade a longo prazo para os acionistas, abandonando a política de curto prazo que sacrifica não só o futuro da Petrobras mas o da nação e de nosso povo