A eliminação histórica de Karol Conká do Big Brother Brasil 21 teve implicações sérias não apenas na carreira da rapper, mas também de outros famosos e marcas que surfaram na onda do cancelamento pra faturarem uma grana.
Ao declarar empatia pela cantora e escrever em suas redes sociais que desejava que Karol aprendesse com seus erros e fosse feliz, Preta Gil aproveitou pra marcar uma cervejaria matar um cachê – e a decepção do Mestre Gil não será televisionada.
Na geração das blogueiras e publis, opinião é mercadoria, não importa sobre o quê. Temos negociado tão radicalmente nossa intimidade, que, a essa altura, até a nossa empatia tem custado caro.
Ao se deparar com essa realidade – que, convenhamos, não é nenhuma novidade pra quem está atento aos sinais dos tempos, mas ainda choca, e que bom por isso – a também cantora Maria Rita, cuja opinião me representa fortemente, expressou sua indignação no Twitter: “SÉRIO que as pessoas estão NEGOCIANDO PUBLI pra ter opinião sobre QUESTÕES ÉTICAS??? estão colocando PREÇO em EMPATIA??? NUM MOMENTO COMO ESSE QUE VIVEMOS???? eu não canso de me chocar.”
Eu também, Maria Rita. Eu também.
É óbvio – mas ainda assim, necessário destacar – que essa indignação não é sobre Karol Conká. Perder contratos e fãs é o preço que ela vem pagando pelos absurdos que protagonizou em rede nacional – de histórias esquizofrênicas à tortura psicológica – e não haveria como ser diferente.
A indignação aqui – ao menos no meu caso – surge diante da capacidade do capitalismo de cooptar tudo, inclusive – em tempos de mercantilização do eu – nossas emoções, nossa empatia, aquilo que ao fim e ao cabo nos torna humanos.
De mãos dadas com o sistema e abençoada por uma publicidade selvagem, a geração blogueiragem negocia tudo: a própria intimidade, remodelada e exibida a um público que é também o produto mercantilizado nas redes; os próprios princípios – ao compactuar com um mercado que vende um ideal inalcançável de beleza e felicidade; e, agora, a própria dignidade, ao transformar o que deveria ser empatia e humanidade em “publi”.
A questão tampouco é sobre Preta Gil – que certamente não foi a primeira nem será a última a embarcar na viagem de negociar a si mesma. É sobre não naturalizarmos um fenômeno tão estarrecedor, sobre a necessidade de identificarmos as consequências da fusão entre intimidade e publicidade (que serão em breve, se é que já não são, uma coisa só).
Publicações no Instagram, que deveriam retratar de modo natural e orgânico recortes da vida que desejássemos compartilhar com nossos amigos, valem milhões.
Entre as “publis” mais caras da atualidade, estão as de The Rock (Dwayne Johnson), com 188 milhões de seguidores. Cada post do astro custa 1,015 milhão (R$ 5,4) de dólares. Já Cristiano Ronaldo, com 227 milhões de seguidores no Instagram, cobra a bagatela de US$ 889 mil (R$ 4,7 milhões) por cada post.
Esses valores exorbitantes são o preço, é bom lembrar, de publicações que vestem uma fantasia de naturalidade e são vendidos como parte da personalidade real de quem os compartilha.
O mercado dos influencers – um dos que mais movimentam grana pesada no mundo – consegue captar qualquer pessoa capaz de influenciar: artistas, atletas, intelectuais e pessoas comuns que por alguma razão atraem muitos seguidores nas redes sociais.
Embora seja chocante – e tomara que nunca deixemos de nos chocar – que Preta Gil tenha vendido sua empatia à colega cujo filho vem sendo chamado de “preto macaco” na internet -, não é necessariamente uma novidade.
Vender empatia e outros valores humanos é um dos principais modus operandis do marketing digital.
A sociedade do desempenho do filósofo sul-coreano Byung Chul Han – cujos habitantes são “empresários de si mesmos” – dão margem ao que talvez seja o ápice do neoliberalismo, aquele que mercantiliza seres humanos em seus aspectos mais íntimos.
Nesse tipo de sociedade, defende Byung, as pessoas não são mais exploradas por uma mão invisível: antes disso, exploram e negociam a si mesmas, incutidas da ideologia neoliberal que privilegia a maximização da produção. Nós não somos mais marionetes do mercado: somos, no grande fracasso do capitalismo tardio, o próprio mercado.
Não apenas a nossa empatia é mercantilizável: na sociedade do desempenho, todos os nossos valores, gostos, sonhos e ideologias também o são, e, embora este seja talvez um beco sem saída que precede a autodestruição do sistema capitalista (e a nossa própria), temos sorte por termos a arte a nos abrir os olhos: “Eu, empresa”, filme baiano aclamado na Mostra de Cinema Tiradentes deste ano, reflete as implicações da uberização do trabalho e do “empreendimento de si” e é uma ferramenta e tanto pra essa reflexão que talvez seja a mais urgente de nossos tempos.
Atingimos, enquanto sociedade, um ponto do qual já não podemos retornar: depois de consumir todos os recursos naturais e capital humano, o sistema cooptou nossas almas.